Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte” empresta seu nome de uma questão que Marcel Duchamp anotou em 1913: “Pode alguém fazer obras que não sejam ‘de arte’?”. A questão sinalizou o início de sua desobediência às formas de arte tradicionais e lançou as bases do que o tornaria o artista mais influente dos séculos XX e XXI. Seu repensar insistente da obra “de arte” é o foco desta primeira exposição individual de Duchamp realizada na América Latina, apresentando mais de 120 peças de cada tipo de mídia em que o artista trabalhou de 1913 até o final de sua vida.
A exposição começa com o momento em que Duchamp propõe sua famosa questão, que coincide com o período em que ele começa a conceber os objetos ready-made produzidos em massa como obras de arte em potencial. No entanto, a invenção do ready-made não foi o único gesto inovador de Duchamp desse período: entre outras atividades, ele inventou um novo sistema de medidas, ao declarar a “arte” um experimento; criou várias cópias fotográficas de suas anotações; usou o acaso para fazer música e foi o primeiro a usar a fotografia e a perspectiva para redefinir a pintura – tudo isso entre 1913 e 1914.
Durante anos, Duchamp continuou seus diversos experimentos, muitos dos quais estão representados nesta exposição. As peças estão organizadas em grupos que enfatizam as ligações e a recorrência de preocupações aparentemente diversas em sua obra. As ideias recorrentes de desejo e percepção aparecem numa série de monitores que permitem que o visitante “espie” os diferentes espaços de exibição que Duchamp preparou durante a vida: do posicionamento dos objetos no apartamento de 1910 a seu projeto final, Etant donnés: 1. La chute d’eau/ 2. Le gaz d’éclairage [Sendo dados: 1. A cascata/ 2. O gás de iluminação].
Marcel Duchamp: um trabalho que não é um trabalho “de arte” traz para a América Latina muitas obras raras e excepcionais, num acontecimento histórico que se tornou possível graças aos empréstimos de grandes museus e coleções particulares, incluindo o Philadelphia Museum of Art, o Moderna Museet de Estocolmo e a Sucession Duchamp, na França.
Elena Filipovic
Curadora
O título desta exposição não se refere à “vida” no sentido de existência biológica. Significa, em vez disso, assumir um novo olhar e fazer descobertas através do simples processo de viver a própria vida.
As culturas do Japão e do Brasil desenvolveram-se sob a influência do modernismo, ainda que tenham se mantido enraizadas em seu meio tradicional e em sua história. O hibridismo também foi comum a ambos os países, que sempre tiveram grande habilidade para abraçar outras culturas. Ainda que seja uma nação marcada por uma mistura de raças, o Brasil continuou a incorporar culturas estrangeiras. O Japão é uma nação insular e quase completamente homogênea do ponto de vista racial, mas isso não o impediu de abraçar ativamente diferentes culturas e — em um processo único — criar formas especificamente japonesas.
Há inúmeras maneiras de aproximar as diferenças entre Japão e Brasil no século XXI. Se o século XX pode ser entendido em três palavras-chave — homem, dinheiro e materialismo (que representam o individualismo, o materialismo e o capitalismo) —, a estas se seguem, no século XXI, três outras palavras-chave — coexistência, inteligência coletiva e consciência. Esses termos refletem uma nova relação entre o indivíduo e a coletividade neste mundo interligado no qual a relação entre indivíduos, meio ambiente e sociedade está em mutação.
As forças por trás do caráter de improvisação da cultura brasileira e da estética do mitate [retrato] e do hibridismo no Japão continuam a produzir obras de alta qualidade, que representam a coexistência entre intelecto, intuição e sensibilidade. Se a improvisação se refere ao sentido de ritmo latente no corpo físico — que pode ser visto na dança e na música —, o mitate representa a derivação ou o retrato de algo distinto daquilo que o objeto parece ser em sua superfície. É um tipo de jogo de palavras ou de metáforas que expressa um outro aspecto do objeto e é abundantemente encontrado em culturas marcadas por um sistema de sofisticados significados e representações. Tanto a improvisação como o mitate caracterizam-se por elementos como “corpo físico”, “meio” e “jogo”, que se desenvolveram a partir da relação com um meio cultural e natural específico.
Em qualquer cultura, existem complexos sistemas de símbolos em que significado e implicação podem se perder com a tradução. É porque derivam de estilos de vida diferentes e vívidos que todos eles permanecem totalmente distintos um dos outros. É a expressão desses variados aspectos da vida como forma que torna possível a conservação de sua complexa riqueza.
Intervenção sobre espelhos
Um amigo me disse que houve um tempo em que os espelhos começaram a substituir as pinturas.
Não durou muito tempo.
Hoje, ao contrário, a ideia desses espelhos seria natural nesse corredor, se ele não levasse ao museu. É uma dessas coisas que a gente vê em elevadores, consultórios e outros espaços de passagem. Por isso achei que os espelhos caberiam aqui. Um lugar ao mesmo tempo comum e vulgar, excessivo e límpido.
Notei que não conseguiria resolver a dúvida entre pintar ou não o espelho, e não hesitei mais. Não o fazer seria como jogar fora uma chance única. Já me perguntaram onde está essa pintura. A melhor resposta é de um outro amigo, que olhou o espelho bem de perto e disse: “Este trabalho é a minha cara”.
Na mostra que abre simultaneamente na Sala Paulo Figueiredo no dia 31/1, Ricardo Resende atua como o coordenador da curadoria coletiva junto com a equipe curatorial do MAM-SP. A exposição é resultado do workshop de curadoria ministrado por Resende em agosto do ano passado. Diante do desafio de criar uma exposição baseada nas cerca de 5 mil obras do acervo, os alunos do workshop se dividiram em três grupos: Moderno, Contemporâneo e Moderno/Contemporâneo, que são os diferentes núcleos da mostra.
Ricardo Resende
curador
O Panorama da Arte Brasileira é hoje uma das exposições mais tradicionais do país. Sua primeira edição aconteceu em 1969, por ocasião da reinauguração do MAM. Depois de ter permanecido fechado por cerca de sete anos, quando seu acervo foi transferido para a Universidade de São Paulo, o museu criou com esta mostra a possibilidade de formar um novo acervo por meio de premiações e doações dos artistas que participaram de suas edições.
Ao serem apresentados cerca de cem trabalhos que entraram para a coleção do MAM graças ao Panorama, percebe-se o quanto os critérios eram pontuais em suas épocas, evidenciando as transformações dos instrumentos analíticos da história da arte nas últimas quatro décadas. O que era considerado uma grande obra em 1969, hoje não tem o seu valor devidamente reconhecido.
Muitos dos trabalhos expostos estão sendo apresentados pela primeira vez depois que entraram para a coleção. Pode-se especular sobre os possíveis motivos de alguns trabalhos estarem relegados a permanecerem guardados. O espaço físico do museu não permite uma exposição permanente do acervo, por exemplo. Ou talvez falte conexão entre um trabalho específico e a política de formação do acervo que compõem a coleção atual.
Neste sentindo, a exposição poderia se tornar um instrumento para colocar lado a lado nomes desconhecidos na atualidade e consagrados pela mesma história da arte. História que, distante da grande maioria do público, não se abre verdadeiramente para uma compreensão de seus critérios de inclusão e exclusão do que se considera arte ou não, de quais trabalhos são bons ou ruins e se são representativos ou não de uma época.
RICARDO RESENDE
Curador
Artistas: Rubens Mano | Alex Cerveny | Eliane Prolik | Paulo Brusky | Rochelle Costi | Tomie Ohtake | Jac Leirner | Nelson Leirner | Rosana Paulino | Alfredo Volpi | Mauro Restiffe | Tunga | Paulo Buennoz | Oudi Maia Rosa | Wanda Pimentel | Amilcar de Castro | Maria Bonomi | Abraham Palatnik | Alcindo Moreira Filho | Anna Letycia Quadros | Arcângelo Ianelli | Arlindo Daibert | Arnaldo Battaglini | Arthur Luiz Piza | Ascânio MMM | Avatar Moraes | Caetano de Almeida | Cao Guimarães | Carlos Fajardo | Carlos Wladimirsky | Chico Amaral | Cleber Gouveia | Danúbio Gonçalves | Dudi Maia Rosa | Edgard de Souza | Emanoel Araújo | Ernesto Neto | Ester Grinspum | Fernando Velloso | Gilvan Samico | Hermelindo Fiaminghi | Flávio Shiró | Hisao Ohara | Franklin Cassaro | Iran do Espírito Santo | Franz Weissmann | Genilson Soares | Ivald Granato | Joaquim Tenreiro | José Alberto Nemer | José Resende | Juarez Magno | João Loureiro | Lídia Sano | Ada Yamagishi | Luiz Paulo Baravelli | Maria Tomaselli | Marcello Grassmann | Mário Cravo Neto | Marcello Nitsche | Marlene Hori | Nazareth Pacheco | Mary Vieira | Mauro Fuke | Nicolas Vlavianos | Paulatrope | Milton Machado | Paulo Lima Buennoz | Renina Katz | Paulo Pasta | Roberto Bethônico | Pazé | Rodrigo Andrade | Sérgio Sister | Takashi Fukushima | Rubem Valentim | Tomoshige Kusuno | Sérgio Porto | Tuneu | Valquíria Chiarion | Vera Chaves Barcellos | Wilma Martins | Wilson Will Alves | Yiftah Peled | Yutaka Toyota
Os sessenta anos do Museu de Arte Moderna de São Paulo foram considerados pela curadoria como uma oportunidade para propor uma reflexão sobre o significado da legitimação institucional de dois conceitos problemáticos: moderno e contemporâneo. Por acreditarem que a noção de moderno é imprescindível para compreender a produção contemporânea, os curadores, a partir da coleção do museu, escolheram dois eixos paradigmáticos: opacidade e polifonia.
A noção de opacidade aponta para uma zona de atrito entre a arte e o universo unidimensional da comunicação e, sobretudo, para a ruptura promovida pela pintura, desde fins do século XIX, com o ilusionismo inerente à concepção espacial herdada do Renascimento. A idéia de polifonia, por sua vez, remete a múltiplas possibilidades de manifestação do acontecimento artístico, liberto da obrigação de responder a um único modo de ser.
A travessia do moderno para o contemporâneo, pensada a partir do questionamento da forma e da expansão do campo de atuação das artes visuais, encontra duas figuras emblemáticas na coleção do MAM: Alfredo Volpi e Flávio de Carvalho. A partir deles, as noções de opacidade e polifonia são expandidas, de maneira a abarcar artistas de diferentes gerações, que compartilham não apenas o interesse pela arte como campo experimental, mas igualmente uma interrogação sobre a natureza do moderno e do contemporâneo.
Além de Volpi e Carvalho, que ancoram a exposição, outros artistas foram considerados nucleares, por proporem percursos não-lineares no âmbito do moderno e do contemporâneo: Lívio Abramo, Almir Mavignier, Mira Schendel, Leonilson, León Ferrari, Geraldo de Barros, Thomaz Farkas e German Lorca. Se também eles são pontos de partida para o estabelecimento de diálogos poéticos com artistas de diferentes procedências, sem qualquer preocupação de caráter cronológico ou de determinação de filiações, existem na exposição dois núcleos temáticos – modernismo e nova figuração –, cuja presença se justifica pelo fato de terem representado momentos emblemáticos na história da arte brasileira no século XX.
Embora de maneira não linear, MAM 60 articula uma narrativa sobre os diversos estágios da instituição, por meio de obras que integraram o acervo desde sua fundação e de um conjunto de documentos. Graças a esse cruzamento, o público terá oportunidade de conhecer uma história complexa, pontuada pela busca de uma identidade, pela perda de rumos e pela descoberta de um novo modo de ser, para o qual o contemporâneo acabou se tornando a dimensão principal.
Annateresa Fabris, Lisette Lagnado e Luiz Camillo Osorio
Curadores
A pergunta que se coloca com insistência é: como se reapropriar da história se ela nos parece tão distante, caótica, fragmentada e imaterial, chegando até nós em sequências que duram três minutos? Assumir como estratégia este dilema (reencenar ou repetir?) parece ser uma opção das mais legítimas. Ao recriarmos algo (uma canção, um filme, um videoclipe, uma obra de arte, um “evento”), ganhamos uma chance de reconciliação com o passado e, acima de tudo, a rara oportunidade de experenciá-lo no presente.
O projeto Cover se situa no campo de tensão determinado pelos embates entre reencenação e repetição na produção contemporânea. Esses procedimentos não se limitam a uma intenção de imitação, muito menos de “apropriação”, pois nesse caso poderiam ser facilmente incorporados como ações já mapeadas pela história.
Esta mostra coletiva e suas ações paralelas (a publicação de um livro, projeção de filmes no auditório do MAM, performances sob a marquise do parque, oficinas no Educativo, o show da banda Os Macaco, a festa bum bum do músico Matias Aguayo no clube Vegas) lança um comentário em direção ao sistema da arte e marca um posicionamento em relação ao estado das coisas hoje.
Cover pretende ser o diagnóstico de uma estratégia adotada por artistas. Neste sentido, propõe-se a captar uma sensibilidade que a um só tempo elogia e critica. É homenagem e ataque. Fascínio e deboche.
Não se almeja fazer um mapeamento do cover como gênero ou como objeto. Também não se trata de buscar algo de “artístico” no cover. Ele é entendido como um lugar a ser habitado, uma ferramenta, um dispositivo a ser, mais do que utilizado, questionado e reinventado pelos artistas – que aqui nos propõem respostas, a maioria delas inéditas, ao desafio proposto por esta curadoria. Para além de um movimento em direção ao passado, Cover é sua convocação e tentativa de atualização em outro contexto: o espaço e o tempo do presente. No limite, uma incisiva operação antinostalgia.
Fernando Oliva
Curadora
Em cima da sua Prostituta da Babilônia − uma moto velha BMW, que só pegava depois de muitas aceleradas −, Walter Smetak percorria as ruas de Salvador. Músico, filósofo, artista plástico, homem de teatro, lunático, poeta e, sobretudo, professor, Smetak cruzou fronteiras musicais, místicas e estéticas. Fez muita coisa a um só tempo.
As plásticas sonoras refletem sua tendência de integrar artes e conhecimentos. Da mistura da música com as artes plásticas, Smetak propõe uma imersão no mistério do som. Constrói novas instâncias de percepção e cria híbridos de instrumento e escultura. São instrumentos que despertam novas faculdades de percepção.
Walter Smetak desconstrói a música para alcançar o som. Do som surge a forma que avança no tempo e no espaço para fundar uma arte espiritual transformadora de mentes, cabaças e cabeças.
A obra foi criada para ser tocada pela imaginação, ou, como dizia Smetak, para ser ouvida com o olho, uma vez que o seu som é virtualmente invisível.
A exposição Smetak: Imprevisto foi idealizada a partir dos vestígios deixados pelo artista em páginas datilografadas e nos inúmeros rolos de gravação das suas experiências sonoras. Propõe-se, assim, um retorno ao espírito almejado pelo artista: manter abertas novas possibilidades de diálogo, estimular novas reflexões, proporcionar releituras imprevistas e atuais.
Jasmin Pinho e Arto Lindsay
Curadores
Café com nanquim, canetas hidrocolor, material de colagem, cola, papéis, partituras de música, páginas de livros e pastel oleoso.
A proposta de Artur Barrio para o Projeto Parede tem algo de similar aos trabalhos que o artista vem apresentando em outras instituições desde os anos 1970. Materiais como café, vinho, areia, carvão e prego são utilizados para criar tensão e ruído no espaço.
Marcel Duchamp deixou legado na América do Sul? Durante sua estadia em Buenos Aires, entre 1918 e 1919, o artista produziu uma obra questionadora da perspectiva. Esse questionamento também está presente na exposição que Duchamp planejou para inaugurar o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1948. Embora essa mostra nunca tenha ocorrido, o MAM São Paulo foi fundado e abrigou sempre exposições com obras também questionadoras da perspectiva.
A perspectiva é baseada na concepção do espaço universal como uma esfera. Assim, a origem de tudo seria um ponto de “energia”, do qual se irradiariam linhas retas em todas as direções, formando, pois, um universo esférico. Em 1420, em Florença, Bruneleschi e Masaccio chegaram a uma representação gráfica da teoria do espaço esférico: se traçasse um desenho ordenado a partir de um ponto para o qual convergissem todas as retas, o plano desenhado equivaleria à base de um cone ou de uma pirâmide vistos “de fora” do espaço esférico, em direção ao ponto central; se o volume das figuras nesse desenho seguisse a lógica de um espaço cônico ou piramidal, essas figuras pareceriam se distribuir em planos que diminuem proporcionalmente, conforme se aproximam do centro, chamado ponto de fuga.
A invenção da fotografia contribuiu para a difusão do modelo espacial da perspectiva: a geometria da câmara fotográfica obriga todos os raios de luz a passarem por um único orifício, reconfigurando-os como cone ou pirâmide no plano sobre o qual formam a imagem registrada fotograficamente. A fotografia, assim como a perspectiva, segue a geometria esférica do espaço.
A crise da perspectiva fazia parte do debate da arte moderna, do qual Duchamp participava no início do século XX. Movimentos como o futurismo, o cubismo e o construtivismo propunham representações de espaços distintos do esférico. Ao fazerem isso, rompiam com o ilusionismo tridimensional conseguido com o modelo de Bruneleschi e Masaccio. No plano do desenho ou da fotografia desses modernistas, só se veriam coisas planas. Criticavam, assim, o uso da perspectiva como algo natural.
Desde sua fundação, em 1948, o Museu de Arte Moderna de São Paulo expôs e colecionou artistas que buscam novos sistemas de representação espacial, reagindo contra a perspectiva geométrica. Tal história nos conecta às relações sul-americanas de Duchamp. Revisitar obras brasileiras que respondem a tal herança nos ajuda a definir um sentido profundo da arte moderna e deste museu que Duchamp ajudou a fundar.
Felipe Chaimovich (curador-chefe do MAM São Paulo)