Este polêmico Panorama da Arte Brasileira organizado com artistas estrangeiros atesta a importância da cultura brasileira para um número significativo de artistas não brasileiros. O fenômeno está relacionado ao crescente reconhecimento internacional da arte de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape, da arquitetura de Lina Bo Bardi, Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, da bossa nova ou da tropicália. Se com a antropofagia, celebrada por Oswald de Andrade no “Manifesto antropófago” de 1928, nosso intelectual moderno apropriava-se da cultura europeia para digeri-la e produzir algo próprio, agora é a própria cultura brasileira que é canibalizada pelo estrangeiro.
A exposição reúne obras brasileiras de artistas estrangeiros – arte brasileira é aqui compreendida como aquela que estabelece fortes referências a conteúdos brasileiros. Um segundo grupo de artistas foi convidado a realizar residências em São Paulo, numa parceira com a Fundação Armando Álvares Penteado, para que tivessem a oportunidade de estabelecer uma relação com a cultura brasileira. Oito artistas residentes passam por São Paulo não para realizarem uma obra para o Panorama, mas para iniciarem uma história por aqui. O resultado é uma mostra composta por obras brasileiras feitas por estrangeiros nem tanto com elementos exóticos, mas por meio de uma forte presença da abstração geométrica, na qual a grade é muitas vezes subvertida por elementos orgânicos, sinalizando um legado do neoconcretismo.
O título Mamõyguara opá mamõ pupé é emprestado de uma obra do coletivo de artistas Claire Fontaine, baseado em Paris. Trata-se da tradução para o tupi antigo da expressão foreigners everywhere, e é parte de uma série de esculturas em neon apresentada em diferentes línguas. Num Panorama que desde o anúncio de seu projeto acendeu discussões sobre nacionalismo, territorialidade e xenofobia no campo da prática artística, a expressão numa língua nativa, que em realidade poucos cidadãos brasileiros compreendem, pode soar amarga: estrangeiros em todo lugar.
Adriano Pedrosa
Curador
Artistas: Adrián Villar Rojas | Alessandro Balteo Yazbeck (com Eugenio Espinoza) | Armando Andrade Tudela | Carlos Garaicoa | Cerith Wyn Evans | Claire Fontaine | Damián Ortega | Dominique Gonzalez-Foerster | Franz Ackermann | Gabriel Sierra | Jennifer Allora & Guillermo Calzadilla | Jorge Macchi | Jorge Pedro Núñez | José Dávila | Juan Araujo | Juan Pérez Agirregoikoa | Julião Sarmento | Luisa Lambri | Marjetica Potrc | Mateo López | Mauricio Lupini | Nicolás Guagnini (com Carla Zaccagnini) | Nicolás Robbio | Pablo Siquier | Valdirlei Dias Nunes | Pedro Reyes | Runo Lagomarsino | Sandra Gamarra | Sean Snyder | Simon Evans | Superflex | Tamar Guimarães | Tove Storch
Fotografias p&b, dimensões variáveis
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, o mundo assistiu ao fim de uma barreira que separava as pessoas física, social e ideologicamente. Ao longo de vinte anos, muitos outros muros têm sido erguidos em vários países para separar e isolar pessoas. A instalação comenta os efeitos desses muros na sociedade contemporânea.
Como montar uma exposição? Os museus geralmente convidam profissionais do próprio meio para selecionar obras e relacioná-las, arrumando-as no espaço expositivo, segundo visões da história da arte.
Entretanto, o MAM convidou os irmãos Campana, consagrados designers industriais brasileiros, para mergulharem na coleção do museu. O resultado é Jardim de infância, uma mostra com obras da coleção do MAM, cujo foco são as formas inusitadas das obras, vistas pelo olhar de dois criadores de objetos utilitários.
Por outro lado, os irmãos Campana convivem regularmente com a produção artística, sobretudo em São Paulo. Assim, artistas referenciais para o processo criativo de ambos também estão aqui representados sob a forma de retratos fotográficos.
Jardim de infância cria um percurso inusitado pelas obras do MAM, em um ambiente colorido que envolve o público numa experiência com a visão, audição e olfato, distanciando-se do ambiente museológico tradicional.
Fernando e Humberto Campana
Curadores
A exposição celebra um século de nascimento do paisagista Roberto Burle Marx. Este evento é particularmente importante, pois São Paulo foi o berço natal de Burle Marx e o parque do Ibirapuera, embora apenas parcialmente executado, um de seus projetos mais relevantes.
Pintor, desenhista, gravador, escultor, ceramista, cenógrafo, músico, joalheiro e, claro, paisagista, Burle Marx era um artista “total”. Nesse versátil humanista prevaleciam, porém, o pintor e o paisagista. A condição de pintor ajudou-o a transplantar formas da vanguarda artística para os jardins, aplicando na natureza princípios do cubismo e do abstracionismo. Pôde, assim, dar aos jardins uma estética singular e moderna.
O primeiro segmento da exposição abriga a obra plástica de Burle Marx. O conjunto dos trabalhos oferece uma oportunidade única de conhecer uma produção eclipsada pelo retumbante sucesso de Burle Marx como paisagista. As obras evidenciam o grande artista plástico que ele também foi.
O segundo setor é dedicado à obra paisagística. Na definição de Roberto, fazer paisagismo é criar a permanência do instável, vencendo o desafio de obter uma composição perene a partir de elementos instáveis com diferentes ciclos de vida. Para Burle Marx, o jardim planejado deve estabelecer com a paisagem relações de harmonia ou de contraste, ao criar um ambiente bucólico, lúdico ou de refúgio. Concebendo os jardins como microclimas, Burle Marx executou centenas de projetos públicos e residenciais que podem ser vistos nesta seção.
A última sala apresenta retratos a óleo de sua família, uma série de desenhos eróticos e outra da agonia do escritor Lúcio Cardoso, inéditas até esta mostra; fotos do sítio em Guaratiba, Rio de Janeiro, onde morou desde 1972 e cultivou as inúmeras espécies de plantas colhidas em suas expedições. Além de seu potente legado artístico, Roberto Burle Marx, pioneiro na luta por uma política de ecologia e profundo conhecedor de botânica, é uma permanente inspiração na luta pela inserção de uma agenda que inclua a qualidade do meio ambiente no processo de desenvolvimento do Brasil.
Lauro Cavalcanti
Curador
O início do século XXI assinala um momento especialmente rico do design brasileiro, virada em que o que era desejo e potencial se torna realidade. O design passou a ser praticado nos quatro cantos do país e efetivamente alcançou produtos e serviços em todos os segmentos. O alargamento da fronteira interna se dá com uma força e um vigor extraordinários. No cenário internacional, o país deixa a posição de coadjuvante para ser visto como protagonista.
Sem a pretensão de fazer um ranking dos melhores, muito menos de traçar um panorama exaustivo de uma produção que é vasta e plural, esta exposição faz uma leitura transversal deste momento, com o objetivo de pontuar alguns exemplos reveladores da capacidade criativa dos brasileiros, pinçados de vários campos de atuação do design.
A abrangência da atividade é enorme. Afinal, tudo o que não é natureza é projetado pelo homem, tenhamos consciência disso ou não. O olhar curatorial procurou incentivar a percepção consciente por parte do público em geral sobre a presença do design em seu dia a dia, aumentando a compreensão de seu papel e alcance.
Dentro desse propósito mais amplo, como escolher o que seria apresentado? Nosso primeiro recorte é o temporal: estão aqui apenas projetos realizados de 2000 para cá. Seus autores são designers que vivem no Brasil, o que inclui estrangeiros que adotaram nosso país como sua pátria e trabalhos feitos por brasileiros mundo afora, refletindo o intenso intercâmbio entre nacionalidades que atualmente caracteriza as profissões criativas.
O segundo recorte é o da diversificação. Tivemos a preocupação deliberada de incluir participantes de várias regiões do país e de diferentes gerações, começando por veteranos que já passaram da casa dos 80 anos de idade, como é o caso de Sérgio Rodrigues, na área de móveis, e de Alexandre Wollner, no design gráfico, até chegar a jovens na faixa dos vinte anos, que apenas começaram, mas já mostram seu valor. A diversificação se faz notar também na inclusão de diferentes especialidades do design – móveis, objetos, equipamentos, veículos, acessórios, livros, embalagens, luminárias, vinhetas para tevê e cinema etc. –, que nem sempre convivem nas mesmas salas expositivas e nas mesmas publicações.
Todos os projetos selecionados têm uma função utilitária, foram feitos para atender a determinado propósito e atingir um público específico. Todos eles, ainda, pressupõem a reprodução em série, que pode se dar de várias maneiras, da industrial à artesanal e à digital, passando por várias gradações entre uma e outra, e em várias direções. No entanto, alguns têm a feição de uma obra de arte, enquanto, na outra ponta, outros se pautam sobretudo por requisitos tecnológicos e dialogam com a engenharia. Para dar conta dessa multiplicidade, o critério que “amarrou” os anteriores foi o das fronteiras – vistas menos como separação e mais como interseção.
Adélia Borges
curadora
A paixão pelos mistérios da fotografia levou o casal Michel e Michèle Auer a se lançar, há quarenta anos, na aventura de constituir uma das mais prestigiosas e importantes coleções privadas do mundo. O MAM tem o privilégio de mostrá-la, pela primeira vez fora da Europa, em virtude das comemorações do Ano da França no Brasil.
Essa aventura tem seu centro irradiador justamente na França, país onde a fotografia foi inventada em 1839 e palco dos principais movimentos artísticos de vanguarda do início do século XX. Esses movimentos deram à arte e à fotografia, em particular, um caráter mais experimental.
Composta por obras produzidas ao longo de toda a história da fotografia, Olhar e fingir apresenta uma seleção de quase trezentas das cerca de 50 mil obras da coleção. As fotografias estão dispostas em quatro módulos, que trazem à tona experimentações, rupturas e revisões da função da fotografia, rompendo com a ordem cronológica para reapresentá-las a partir de conexões que tem a transgressão como fio condutor. Os módulos são: Transfigurações, Beleza convulsiva, Performance e Fantasias formais.
A curadoria procurou selecionar obras geradas a partir da inquietação de artistas que expandiram o repertório da fotografia para além de sua função documental. As obras expostas fizeram a fotografia alçar voo rumo à subjetividade e a complexidade da representação até a conquista de sua autonomia como expressão artística. Ao invés de mimetizar a realidade, estas fotografias propõem encenações, pontos de vista inesperados e experimentações sobre o registro fotográfico que apresentam aos nossos olhos a visão do fantástico.
Olhar além do aparente. Fingir, criar ficções a partir dos vestígios captados na realidade, para representar um mundo paralelo, não visível, no qual o homem possa investigar seus desejos, fantasias e inquietações. Olhar e fingir é a fotografia em estado transgressivo e questionador.
Elise Jasmin e Eder Chiodetto
Curadores
Habituada a lidar com a história, o colecionismo e a acumulação de conhecimentos, Mabe Bethônico não se restringe a fazer algo no corredor de ligação do MAM. Ela vai além do contemplativo. Depoimentos podem ser ouvidos entre as estantes deslizantes da biblioteca. Um audiobook fica sobre a mesa. Uma trilha está instalada atrás das mesas das bibliotecárias. Algumas extensões da obra escapam e vão para o parque. Sinalizações estão espalhadas pelo museu, incluindo um mapa do acervo da biblioteca, que ocupa estrategicamente as paredes do corredor. “O que me interessa é a história da constituição da biblioteca do museu”, comenta a artista.
Na tradição do pensamento ocidental, é recorrente a ideia de que a arte é apenas ilusão. Em vez de revelar o mundo que está aqui, ela o encobriria e nos afastaria dele. A ciência seria então a única maneira de garantir acesso verdadeiro às coisas. O pensamento científico tenta explicar tudo a partir de teorias racionais. Mas a arte permite um outro contato com o mundo. Diversamente da compreensão científica, a aproximação de uma obra de arte se dá antes de tudo pela percepção, que é sempre indeterminada e ambígua.
A arte nos permite reatar o contato direto com o mundo antes de fazermos qualquer reflexão ou análise. Com a arte, aprendemos a retornar às coisas, aos fenômenos que observamos, e podemos descrevê-los tais como os percebemos. Essa percepção não pode ser substituída pelo pensamento, nem derivada de uma teoria. A arte brasileira, em especial nas décadas de 1950 e 1960, foi discutida sob essa ótica. O módulo Origens aborda parte desse debate. Não podemos perceber a arte a partir de uma ideia pré-concebida do que ela seja. Por isso, podemos vê-la cada vez de uma maneira diferente e sob uma nova perspectiva. Desdobramentos posteriores da arte nos mostram que transformar a arte percebida em ideia, em representação mental, seria atrofiar a arte. O mesmo se pode dizer do Corpo. É com o corpo que percebemos a arte, mas o que sentimos no corpo não são apenas sensações exteriores a nós ou ideias internas construídas pela nossa consciência.
Nenhuma visão ou percepção da arte pode esgotá-la de uma vez por todas, nem abarcá-la completamente. Toda obra de arte é interminável; ela se oferece a nós parcialmente. Ela pode nos proporcionar sempre uma próxima experiência, um infinito recomeço. Essa experiência não pode ser dissociada do tempo, já que o nosso contato com ela acontece no tempo e na história. Quando voltamos ao museu e revemos uma obra podemos participar dela de uma maneira diferente. Mas é preciso cuidado: o retorno ao museu não deve ser uma obrigação, nem o contato com a arte burocrática, senão extirpamos o que a arte propicia de melhor – a singularidade da experiência. A experiência da arte pode nos dar acesso pleno ao mundo.
Cauê Alves
Curador
Por uma questão de justiça poética, já que o artista partiu tão cedo, as telas de Jorge Guinle decidiram permanecer jovens. Fisicamente até, elas passam a impressão de tinta fresca. Irradiam sempre a mesma vontade de pintar, a mesma vontade de viver, continuam a provocar, a agradar e a desagradar.
Passados vinte anos de seu desfecho prematuro, a obra de Jorge Guinle tornou-se quase sinônimo de pintura brasileira contemporânea. Ela traduz à perfeição a forma convulsa do mundo atual: belo caos.
Jorge Guinle vivia a pintura com tal intimidade que a fronteira entre vida e arte era quase indistinta. Passional, Guinle pintava a tela no chão, girando-a em todos os sentidos, ora relaxado, ora frenético, como se não fosse possível, nem desejável, acabar o quadro. O colorista virtuoso errava ao acaso pelo perímetro do quadro, com alegre desenvoltura ou angústia manifesta. Sempre haveria a próxima tela.
Enquanto atacava a tela, Jorge Guinle podia evocar Matisse ou De Kooning. Artistas de sua geração, como Julian Schnabel, Anselm Kiefer e Georg Baselitz, forneciam-lhe estímulos que redesenhavam um mapa da contemporaneidade onde a pintura voltava a ser relevante. Em comum, havia o desafio da revitalização do instinto de pintura. Jorge Guinle não se furtou a esse desafio.
Um mérito incontestável na curta e fulgurante trajetória artística de Jorge Guinle foi o de liberar a pintura brasileira da tradição modernista. O artista tinha muita familiaridade com essa tradição, por sua educação francesa, mas era dotado da nativa desinibição ianque, que lhe permitia assimilar os opostos e contrários inerentes à vida contemporânea. O produto final era brasileiro, desprovido da inércia da tradição e do espírito competitivo estressante.
Jamais tantas telas e desenhos de Jorge Guinle foram reunidos num mesmo lugar. Somente agora eles confrontam a dimensão pública que sempre perseguiram. Com esta exposição, os curadores buscam recuperar o processo histórico e cultural em que a obra de Jorge Guinle está inserida. Com seus títulos divertidos ou tocantes, suas pinceladas aleatórias ou intencionais, as pinturas de Guinle deflagram o belo caos, abrindo um mundo à nossa frente e falando de uma vida que merece ser vivida.
Vanda Klabin e Ronaldo Britto
Curadores