Mitologias por procuração reúne mais de cinquenta obras pertencentes ao acervo do mam e selecionadas pelos 22 artistas participantes, entre elas duas escolhidas pela curadoria. Este projeto partiu da exposição Mitologias, realizada em dezembro de 2011 na Cité Internationale des Arts, em Paris, que incluiu obras deste mesmo grupo de artistas. O projeto, encomendado pelo Itamaraty, buscava refletir sobre o crescente interesse, no âmbito internacional, pela arte contemporânea brasileira, ao mesmo tempo em que reunia práticas que dialogam com alguns dos múltiplos legados culturais característicos de nossa modernidade.
Ao propor uma versão de Mitologias no mam, interessou-nos sobretudo trazer os questionamentos levantados na primeira versão a fim de fazer uma reflexão acerca das obras que formam a coleção do museu. Para tanto, criamos um mecanismo através do qual cada artista presente em Mitologias foi convidado a selecionar uma ou mais obras do acervo para integrar esta exposição. Assim, desta vez, todo o trabalho curatorial foi caracterizado pela incerteza em relação ao formato final da mostra, já que os artistas ficaram completamente livres em suas escolhas. Estabelecido o prazo de seleção, Mitologias por procuração foi se revelando pouco a pouco, na medida em que recebíamos as nomeações. Estas se caracterizam não apenas pela variedade dos meios e estilos selecionados, mas acima de tudo por representarem um conjunto de obras menos conhecidas atualmente pelo público do museu. De fato, é notável a ausência do que se poderia chamar de “peças chave” da coleção do mam: grandes nomes como Geraldo de Barros, Hélio Oiticica, Mira Schendel, entre tantos outros.
O empenho e a seriedade com que os artistas assumiram sua tarefa revela-se em escolhas que dialogam com suas próprias trajetórias e interesses, abrindo outras vias possíveis de associações entre legados modernos e contemporâneos da arte brasileira que não aquelas propostas pelos críticos, historiadores e curadores. Há, ainda, uma espécie de inversão interessante nesta segunda etapa do projeto: se na mostra Mitologias a curadoria buscou investigar nosso legado histórico a partir de obras contemporâneas, em Mitologias por procuração são obras majoritariamente históricas que apontam para o desenvolvimento da produção contemporânea.
Kiki Mazzuccheli
Curadora
Em 22 de março de 1943, Maria Martins inaugurou sua terceira exposição individual, na Valentine Gallery, em Nova York. Maria: New Sculptures dividia o espaço da galeria com Mondrian: New Paintings. Às límpidas linhas verticais e horizontais, então coloridas e fragmentadas de Mondrian, Maria contrapunha suas escuras formas enredadas. Era a Amazônia que ela buscava figurar nesta mostra, não apenas em imagens, mas também em palavras: para acompanhar a exibição das peças, preparou um catálogo, em inglês, no qual narrava brevemente os mitos que envolviam as oito personagens apresentadas: Amazônia, Cobra Grande, Boiúna, Yara, Yemenjá, Aiokâ, Iacy e Boto.
Este conjunto de esculturas demarca uma mudança decisiva na concepção formal dos trabalhos de Maria Martins. Se antes suas peças tendiam a uma representação mais tradicional da figura humana, com contornos definidos, agora suas personagens, embora ainda reconhecíveis, se fundem a um emaranhado de folhas e galhos que fazem as vezes da floresta tropical. A figura humana começa, a partir de então, a se integrar à natureza, confundindo-se com esta e, em última instância, metamorfoseando-se nela.
Esta exposição busca flagrar as contínuas transformações da forma ao longo do desenvolvimento artístico de Maria Martins, não apenas nas esculturas, mas também nas pinturas, nos desenhos, nas gravuras que com aquelas dialogam. A ideia é mostrar como a desfiguração do humano, nesta obra, é sempre já o início da figuração de outra forma, que se aproxima ora do vegetal, ora do animal. Para tal, dividiu-se a exposição em cinco núcleos – Trópicos, Lianas, Deusas e Monstros, Cantos, Esqueletos − determinados a partir de uma comunicação formal antes que cronológica. Os núcleos não se pretendem estanques, mas, pelo contrário, fluidos (a metamorfose não tem fim). Há obras que se encontram nas passagens de um a outro, que oscilam entre cá e lá.
Pontuam a exposição citações de Euclides da Cunha, Alberto Rangel, Mário de Andrade, Raul Bopp, Flávio de Carvalho e Clarice Lispector. Quer-se, com elas, mostrar como a obra de Maria Martins estava em sintonia com todo um pensamento brasileiro moderno (não só modernista) da forma como formação incessante.
Completando a exibição das esculturas, das pinturas, dos desenhos e das gravuras, apresentam-se uma joia desenhada por Maria Martins e uma série de 17 cerâmicas, que pertenciam à sua casa de Petrópolis. A atividade da artista como escritora também está aqui contemplada, com seus três livros e os artigos publicados por ela no Correio da Manhã, estes últimos praticamente desconhecidos atualmente.
Trópicos
Antes da exposição de 1943, Maria Martins já vinha voltando sua atenção para temas brasileiros, mas ainda moldava seus Samba, Negra, Yara em formas convencionais. Obras como Yemenjá e Iacy, aqui exibidas, já sinalizam o entrelaçamento do elemento humano ao vegetal, embora as figuras representadas sejam ainda claramente discerníveis. Na passagem para o núcleo seguinte, N’oublies pas que je viens des tropiques e Glèbe-ailes, muito parecidas entre si, são variações de um corpo em plena transformação.
Lianas
Neste segundo conjunto de esculturas, há certa concentração nos elementos que eram secundários no primeiro: as formas enredadas que circundavam as figuras principais. Em Comme une liane, é a própria figura feminina que tem seus membros convertidos em algo semelhante a galhos flexíveis ou cipós. Prometheus e Orpheus – que fogem ao tema da floresta, mas não à forma ali ensaiada – se confundem com o entorno emaranhado do qual fazem parte. Na passagem, Hasard hagard e Sûr doute apontam para o estranhamento das formas do núcleo seguinte.
Deusas e Monstros
“Sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros / sempre te parecerão sensuais e bárbaros”, escreve Maria Martins no poema Explication, que integra a tiragem especial do catálogo da mostra de 1946, aqui exibido. Ao longo de sua carreira, Maria produziu uma série de deusas e monstros, nos quais a figura humana aparece transformada. Em Impossible, a escultura mais célebre deste núcleo, o caráter erótico da metamorfose se explicita: dois corpos, um feminino e um masculino, são impedidos de se aproximar totalmente em função das estranhas formas pontiagudas de suas cabeças, ao mesmo tempo em que parecem magneticamente – amorosamente – ligados para sempre. Na passagem, as bocas abertas de A tue-tête, O galo e Chanson en suspens antecipam os cantos mudos do próximo núcleo.
Cantos
Em seu livro sobre Nietzsche, Maria Martins demonstra especial admiração pelos cantos de Zaratustra. Em O canto da noite (título que ela toma emprestado para uma de suas esculturas), Nietzsche escreve: “Uma sede está em mim, insaciada e insaciável, que busca erguer a voz”. Em O canto do mar e na escultura sem título, as formas se tornam mais arredondadas, mais indefinidas, mais abstratas, numa possível tentativa de dar forma ao que não é palpável, como a voz. Calendário da eternidade e Très avide, por sua vez, sugerem as aberturas do corpo, pontos de dissolução da forma nos mistérios da profundeza informe: talvez bocas, talvez vulvas.
Esqueletos
De uma maneira geral, a obra de Maria Martins se voltou sobretudo para as formas orgânicas. No entanto, há um conjunto de trabalhos que tendem à forma do esqueleto, ou seja, que se concentram naquilo que, no organismo, bordeja o inorgânico. Brouillard noir e Tamba-tajá perdem corporalidade, se comparadas com outras esculturas suas, e se reduzem a ossaturas. Pourquoi toujours, que pode lembrar a forma de uma planta, é toda pontuada por pequenas caveiras. É como se Maria, barrocamente (e ironicamente), nos recordasse que o que resta do humano, ao fim das metamorfoses, são os ossos. Somente a eles corresponde talvez a utopia de uma forma final.
Veronica Stigger
Curadora
No início da década de 1980, Andy Warhol e eu resolvemos fazer uma colaboração conjunta em um projeto. Havia um entendimento perfeito entre nós. Reprimidos sexualmente por uma educação católica muito preconceituosa, nós dois encarávamos a vida e o mundo da mesma maneira, e ambos nos beneficiamos de nosso relacionamento.
Andy e eu também adorávamos Duchamp, Dalí e Man Ray, todos surrealistas. Eu sabia que algumas pessoas consideravam Andy um dadaísta de tempos posteriores, e eu enxerguei com clareza que devia tomar como ponto de partida a famosa fotografia de 1921 em que Man Ray retratou Duchamp usando chapéu de mulher e vestido. Eles chamaram essa colaboração de Rrose Selavy.
Ficou claro que qualquer colaboração teria que explorar as nossas próprias referências culturais e não apenas expressar uma cópia do trabalho Rrose Selavy, de sessenta anos antes. Fiquei imaginando como lidar com esse limite tênue entre o “roubo” da citação e a “criatividade” de encontrar inspiração no trabalho de outrem.
Resolvemos fotografar o rosto e o cabelo e manter o uniforme comum de Andy na época: jeans, camisa social, gravata quadriculada e bota de caubói. Tínhamos certeza de que a maquiagem facial e a peruca fariam um bom contraste com a gravata e o jeans, que por sua vez iriam amenizar a caricatura feminina. Ficou claro que precisávamos de perucas novas, e Andy obviamente sabia onde encontrá-las.
O primeiro dia da sessão de fotos chegou, e só então percebemos como um pouco de maquiagem e uma expressão calculada não seriam suficientes para transformar um homem em referência de mulher. Por isso, decidimos fazer duas sessões distintas: na primeira, Andy chegou maquiado à mesma maneira das mulheres que ele retratava por encomenda. Nessas fotos, ele tem as mesmas expressões perdidas das senhoras ricas que sempre fotografava. Depois fizemos as sessões glamorosas. Com a ajuda de um maquiador profissional de teatro, Andy se transformou em uma extraordinária Altered Image [imagem alterada].
Oito perucas, dois dias de poses, dezesseis folhas de contato, 349 imagens. Nós tínhamos juntado e misturado elementos estilísticos para expressar uma sexualidade ambígua, dando atenção à confusão de gêneros sexuais e aos estilos de vida alternativos e não conformistas que estavam começando a surgir em Nova York no final da década de 1970.
Levando em conta o estado emocional da cultura por todo o mundo em 2009, as imagens Mistaken Identity, criadas em 1981, continuam falando com eloquência ao observador contemporâneo. Para mim, elas continuam me lembrando Man Ray, minha maior inspiração, e Andy Warhol, meu maior modelo e amigo.
Christopher Makos
Curador
Com vivacidade, humor e alegria, Alex Vallauri acrescentou formas, cores e imagens inovadoras, que revolucionaram a maneira de se ver e de se fazer arte no Brasil, aos valores estéticos convencionais do desenho, da gravura e da pintura.
O artista percebeu que a obra de arte só poderia ser realmente entendida se o autor se preocupasse também com os anseios e as aspirações das pessoas. Por isso substituiu as técnicas gráficas tradicionais, executadas entre as quatro paredes de seu ateliê, por grandes matrizes que estampava à surdina nos muros e paredes da cidade; criou, assim, signos imediatamente identificados, amados pela multidão anônima que diariamente passava por aqueles lugares. Uma atitude corajosa de um audacioso artista que, desvinculado de falsas vanguardas, almejava a comunicação e a fruição estética: apenas arte, por meio da qual o humor, a ironia, a crítica e o prazer de viver eram magistralmente transmitidos para a população.
Depois de uma fase inicial expressionista, Alex Vallauri encontra na pop art a sua principal inspiração. No final dos anos 1970, o kitsch, símbolo estandardizado da indústria de sonhos típica das grandes cidades, disseminado em São Paulo, Nova York, Chicago e nas principais metrópoles, foi percebido e anexado ludicamente em suas obras. Um jogo no qual a fantasia se misturava com a realidade confusa do cotidiano: uma reinvenção pessoal de Alex Vallauri da pop art nos trópicos…
Em 1978, o artista dá início à sua faceta mais conhecida, a de grafiteiro. Assim a sua Bota preta inicia seu percurso em São Paulo. No começo, timidamente, para em seguida, num voo mais amplo, chegar aos Estados Unidos e se transformar em cartão postal de Nova York.
Da mesma forma que os artistas da pop art Andy Warhol, Claes Oldenburg, Tom Wesselmann, Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein, James Rosenquist e George Segal, entre outros, que acreditavam que os objetos e materiais funcionavam como coautores da obra, Vallauri confirmou essa nova maneira de fazer arte ao idealizar a instalação A festa na casa da Rainha do Frango Assado para a 18ª Bienal Internacional de São Paulo. Os objetos da obra expressam intrinsecamente o essencial, instalam uma certa verdade inalcançável à arte por outros meios, testam os limites sacralizados da pintura – mais uma tradução particular, convincente e arrojada deste artista para a pop art latino-americana.
Uma cosmogonia visual que ampliava as discussões sobre a própria criação artística e cuja meta era alcançar um diálogo singular com diferentes técnicas, objetos e/ou materiais.
Assim como os artistas da arte pop almejaram transformar suas obras em múltiplos assinados e numerados para a democratização e o acesso de um número maior de usufruidores/colecionadores, Alex Vallauri, também conseguiu, em parte, popularizar suas criações no Brasil. Elas foram instaladas primeiro nos muros e nas paredes de São Paulo, e posteriormente em Nova York, onde se transformaram em cartões-postais. Por serem diferenciados, foram impressos como símbolos vivos de Nova York. Seus grafites coloridos, diversificados e instalados em pontos incomuns daquela cidade – Soho, Greenwich Village e até na Broadway – foram depois registrados fotograficamente pelo próprio Vallauri, que os transformou em uma edição limitada de fotocópias coloridas, assinadas e datadas pelo autor e agora apresentados nesta exposição.
Desenhista, gravador, pintor e designer, Alex Vallauri foi respeitado em todas as suas atividades artísticas. Apenas o sucesso comercial lhe foi negado, o que jamais o impediu de continuar a criar arte – apenas arte, na qual o humor, a ironia, a crítica e o prazer de viver eram passados para a população sem retoques ou arrependimentos. Um artista transformador, perfeitamente engajado no seu tempo e no seu espaço. Uma carreira desenvolvida num curto intervalo cronológico: entre 1967 e 1987.
Ele intuitivamente pressentiu essa brevidade temporal. Tinha pressa de entender, captar e vivenciar o pouco tempo que a vida lhe destinara; pesquisava e produzia sem parar, nunca se acomodava. Ele queria mais, precisava de mais. O tempo foi demasiadamente curto para uma produção artística tão farta e boa.
João Spinelli
Curador
O português Rodrigo Oliveira é o autor do primeiro Projeto Parede de 2013, que faz parte do calendário do Ano de Portugal no Brasil
Boa vizinha (Aquarela do Brasil) explora plasticidade da cor em pintura que recorre ao muralismo e à arquitetura para remeter à relaçãoentre ex-colônia e e ex-metrópole
O Projeto Parede do MAM-SP, que convida dois artistas por ano para ocupar com uma obra o corredor de acesso entre o saguão de entrada e a Grande Sala do museu, traz em sua primeira edição de 2013 o artista português Rodrigo Oliveira, cuja participação integra a programação do Ano de Portugal no Brasil com a obra Boa vizinha (Aquarela do Brasil). A abertura acontece paralelamente à da mostra Circuitos cruzados, no dia 22 de janeiro (terça-feira), a partir das 20h.
O artista cria uma pintura formada pela água de chuva que ele mesmo borrifa em pequenos recipientes em que estão pastilhas de aquarela, presos em pequenos godês junto ao teto. De efeito sutil e colorido, a obra aparentemente alegre remete a conteúdos mais profundos e críticos que partem da Política de Boa Vizinhança levada a cabo pelos Estados Unidos durante o governo Roosevelt, (1933-1945), para enfocar a assimilação por Portugal de um ideário brasileiro exótico comunicado principalmente pelas telenovelas exportadas pela ex-colônia para a ex-metrópole ibérica.
Apropriando-se do muralismo e da arquitetura em sua constituição, a obra parte da canção Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, tanto em sua execução quanto em sua temática. Assim como a música foi composta em um dia de chuva, também a pintura é formada pela água pluvial e por aquarela.
Assim como dá título à obra, a música serve de tema ao desenho animado Alô, amigos (1942), dos estúdios Disney, grande sucesso criado com o intuito de aproximar as culturas norte-americana e latina. Nele, o que se vê é um Brasil estilizado, colorido e exótico, como nas novelas brasileiras, que firmam esse mesmo ideário em Portugal. O que aparentemente é uma pintura delicada e colorida remete a questões políticas que conferem um caráter melancólico à obra.
A exposição Circuitos Cruzados: o Centre Pompidou encontra o MAM é a reunião de duas coleções relativamente diferentes: a do Centre Pompidou, que cobre todos os estilos artísticos e obras oriundas de diversas culturas – principalmente a ocidental, mas também a asiática, a sul-americana, a africana – e abrange dois séculos; e a coleção do MAM São Paulo que aborda a cena moderna e contemporânea brasileira.
Para esta exposição, foram selecionadas cinco instalações icônicas dos anos 1960-70 que fazem parte da coleção do Centre Pompidou, a maioria funcionando em circuito fechado, a tecnologia de vídeo dos sistemas de vigilância contemporâneos. Estas instalações colocam o espectador diante de alguns desafios nos planos sensorial e intelectual.
Cada uma das seis seções que compõem a mostra baseia-se em uma instalação – de Vito Acconci, Peter Campus, Dan Graham, Bruce Nauman e Nam June Paik, além da obra encomendada a Tony Oursler –, e estabelece uma relação com obras contemporâneas da coleção do MAM dos anos 1970 até hoje; todos os campos e suportes são combinados.
Cada seção está cercada por uma nuvem de palavras-chave que funciona como língua comum de intercomunicação entre os trabalhos. A escolha desse sistema para estabelecer conexões entre as coleções permite-nos ampliar o espectro de reflexão e diluir as fronteiras entre as mídias incluídas na exposição. Ao longo do circuito da mostra, o espectador vai encontrar essas palavras inscritas nas paredes, e a partir delas poderá tecer suas próprias redes de relações.
Esta exposição é o resultado de um intenso diálogo entre duas curadoras. Em Paris, Christine Van Assche, curadora-chefe do Centre Pompidou; em São Paulo, Paula Alzugaray, curadora independente e editora. Desde o início dessa dinâmica, há mais de dois anos, vimos a necessidade de promover uma reunião das coleções, reconhecendo suas particularidades, suas afinidades, suas diferenças. A dimensão política de Circuitos Cruzados consiste no diálogo – entre instituições, países, artistas, mídias e gerações – e no compartilhamento de estratégias e políticas culturais.
Paula Alzugaray e Christine Van Assche
Curadoras
O que é o gosto contemporâneo? A humanidade vive hoje o período de maior acesso a variedades de alimento e a tecnologias de conservação e transporte de comida em toda nossa história evolutiva. Por um lado, nossa reação animal à fartura alimentar tem multiplicado enfermidades opostas: obesidade e bulimia; por outro, as desigualdades geopolíticas geram zonas de consumismo desenfreado e desperdício, contrapostas a regiões de fome e seca.
Assim, a investigação sobre o cozinhar e o comer tem ocupado agentes da cultura atentos aos desafios atuais. Mas a economia da alimentação tende a isolar cada um desses agentes culturais por meio da especialização profissional: uns só cuidam do preparo, outros só servem, estes degustam novas receitas, aqueles testam ingredientes e misturas. Apesar de nosso grau de progresso alimentar, a questão do gosto parece se diluir.
O MAM inaugura agora sua linha de arte e gastronomia para criar um espaço para a livre experimentação sobre o gosto contemporâneo. Dez duplas de chefe de cozinha e artista trabalharão aqui, cada uma delas de terça a sábado, durante dez semanas, colaborando numa cozinha especialmente concebida para a Sala Paulo Figueiredo. Cada dupla deixará registradas numa lousa etapas desse processo de trabalho. O público poderá observar ao vivo a interação entre os saberes de chefe e de artista, que a cada sábado culminará numa experiência degustativa livre de regras: não há cardápio predeterminado, nem freguês a atender, ou obra de arte para ser preservada.
Felipe Chaimovich e Laurent Suadenau
Curadores
Um jogo de projeções no teto do corredor de ligação do MAM apresenta a imagem de uma equilibrista caminhando num cabo de aço. A imagem está na mesma escala que o público, que vê a equilibrista de baixo e tem a nítida impressão de que há alguém passando sobre sua cabeça por toda a extensão do corredor.
Boa parte da ilusão de Por um fio é produzida pela sincronização dos movimentos da equilibrista e do público. A semelhança entre seus passos na projeção e os passos do visitante no corredor cria um jogo entre realidade e virtualidade no qual o observador pode partilhar da sensação de vertigem que o ato de caminhar por um fio provoca em muita gente.
Radicada em São Paulo, Helena Martins-Costa fala sobre Por um fio: “O título evoca a ideia de limite, de situação extrema, onde um frágil equilíbrio sustenta algo que está à beira do abismo. Essa situação sugere um risco enorme. É como se a cada instante fosse preciso interceder para evitar a queda que parece iminente. Para não cair durante a travessia, a equilibrista é convocada a uma dinâmica necessária e vital de compensação, sustentação e harmonização de forças antagônicas, externas e internas, que atuam sobre seu corpo e sua mente”.
No jogo entre o real e o virtual, a imagem da equilibrista é uma alegoria da sua própria condição. Afinal, o que pode cair? Quem caminha na imagem ou a própria imagem do caminhante?
Oswaldo Goeldi, o homem que sempre acreditou em contos de fadas
Após a participação de Oswaldo Goeldi na 2ª Bienal (1953) e na 3ª Bienal (1955) como artista convidado, Goeldi ficou motivado a realizar sua primeira individual no MAM, em 1956. Ele ficou extremamente feliz por apresentar uma retrospectiva de seus trabalhos, mas jamais poderia imaginar que a partir de então surgiriam tantas exposições e homenagens – não apenas ao artista, disciplinado, concentrado e dedicado ao trabalho solitário, mas também ao homem, carismático, com opiniões simples e devaneios poéticos.
Assim era Goeldi
Filho de um dos mais respeitados naturalistas suíços – o prof. dr. Emílio Goeldi, ex-diretor do Museu Paraense (atual Museu Paraense Emilio Goeldi) –, Goeldi optou pela solidão ao lado de sua arte maior, a xilogravura.
Abstraiu-se de tudo para viver num mundo à parte em seu pequeno quarto, onde podia ver o mar, o sol, a chuva e criar personagens a partir de sua visão indagadora e fantástica.
Assim é Goeldi
Presente, atual, contemporâneo, preocupado com as questões sociais, com os excluídos, com a falta de ética e caráter dos homens.
Sua luta incessante para alçar voo por meio de seus personagens soturnos nos faz sempre querer mergulhar fundo na obra deste criador de figuras enigmáticas.
Lani Goeldi e Paulo Venancio Filho
Curadores
Sombriamente iluminado é o mundo de Oswaldo Goeldi. É o mundo brasileiro – o éden tropical – entrevisto pelo avesso, invertido, iluminado pelo subterrâneo. Goeldi é a nota dissonante ao modernismo solar de 1922, ao populismo de Portinari, ao sensualismo lasso de Di Cavalcanti, seus contemporâneos. Antes, muito antes, do surgimento entre nós de uma linguagem abstrato-geométrica, Goeldi já havia estabelecido uma poética sucinta, exata, lúcida, avessa ao prolixo, distante dos clichês e lugares-comuns. Suas xilogravuras e desenhos nunca apresentam o fato consumado, mas a interrogação, a iminência do que vai acontecer. No entanto, especialmente as xilogravuras nos atingem de imediato, como flashes fotográficos. Provocam um sobressalto incômodo. As ruas desertas, os casarões, os transeuntes solitários, os pescadores, os urubus povoam anonimamente suas obras, habitam um espaço incerto, interrogativo, entre parênteses. Parece distante, mas é muito próximo. Os indivíduos vagam um tanto sem destino, acossados pelo destino de todos: vida e morte. Não há solidariedade entre os homens, apenas entre eles e uns poucos animais. A natureza ainda atemoriza, uma tempestade está sempre presente, ameaçando – ainda hoje – a desamparada cidade brasileira que foi o habitat de Goeldi, o Rio de Janeiro.
“Irmão” de Edvard Munch nos trópicos, amigo e correspondente de Alfred Kubin, Goeldi foi artística e existencialmente um autêntico expressionista – não há expressionista que não seja autêntico. Inseparáveis são a vocação e o destino. Como expressionista, ele também é implacável: há o mundo do trabalho, do contato e da compreensão da natureza que é o dos pescadores, e o mundo da angústia urbana da cidade inacabada e ameaçadora. Há uma frase de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil que se aplica com perfeição à obra de Goeldi: “A transição do convívio das coisas elementares da natureza para a existência mais regular e abstrata das cidades deve ter estimulado, em nossos homens, uma crise subterrânea, voraz”. Pois a obra de Goeldi fala dessa “crise voraz” ainda presente, ainda sentida em nosso dia a dia. Ela está aí para lembrar que aqui, especialmente aqui, o Sol também lança uma sombra.
Oswaldo Goeldi nasceu em 31 de outubro de 1895 no Rio de Janeiro, cidade em que viveu sua vida de artista, indissociável de sua obra. Seu pai foi o naturalista suíço Emílio Goeldi, que se estabeleceu no Brasil a serviço do imperador d. Pedro II. Aos seis anos, mudou-se com a família para a Suíça, onde estudou e serviu como sentinela durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1919, retornou ao Brasil. Em 1951, recebeu o Prêmio de Gravura Nacional na 1ª Bienal de São Paulo. Morreu em 15 de fevereiro de 1961.
Paulo Venâncio Filho e Lani Goeldi
Curadores
Em 1952, German Lorca fez sua primeira individual no MAM. Sessenta anos depois, no mesmo museu, a exposição German Lorca fotografias: acontece ou faz acontecer? celebra a sua trajetória.
A mostra se baseia no lema de Lorca: “a fotografia acontece para o fotógrafo e ele a faz acontecer”. Esta seleção de 120 fotografias – 87 do seu acervo pessoal e 33 da coleção do MAM – interrelaciona diferentes momentos da sua produção fotográfica. A reflexão sobre o que acontece para o fotógrafo, aquilo que ele flagra e o que ele faz acontecer para fotografar, ou seja, o que constrói, permeia toda a obra de Lorca e o presente recorte.
Com um rico panorama que abrange da fase inicial à consagração de uma trajetória de 65 anos de fotografia, apresenta-se aqui uma celebração à proximidade dos noventa anos de vida de German Lorca.
Daniela Maura Ribeiro
curador
Wolfgang Tillmans constrói um mapa do mundo contemporâneo. Cada uma de suas imagens mostra a luz em suas diversas formas, desde cenas nítidas e contrastadas até campos monocromáticos. Ele as pendura em paredes brancas como se fossem constelações contra um fundo claro e brilhante, desenhando figuras com a diferença de cores, tamanhos e espaçamentos entre as partes do trabalho. Mas, ao invés de confortar o espectador com a representação de uma realidade reconhecível, a fotografia é usada por ele para cartografar um universo de acaso e incerteza.
Satélites, planetas e cometas sempre despertaram a atenção de Tillmans. Ele consegue identificar com facilidade os personagens mitológicos que nomeiam os grupos de estrelas em suas fotos noturnas, pois tem observado o céu com telescópios desde a infância. Essa familiaridade com a astronomia deu-lhe uma compreensão geométrica da luz. Ele acompanha as linhas formadas pelas sombras projetadas pela Terra na atmosfera enquanto voa pelo mundo, sempre sentando na janela dos aviões para ficar observando. Como Tillmans entende o comportamento das linhas de irradiação luminosa e dos ângulos de reflexão, consegue determinar a composição de suas imagens conforme as leis da luz em si.
Quando Tillmans começou a estudar fotografia, os telescópios deram lugar às câmeras. Ele leva consigo apenas aparelhos portáteis que se aproximem o mais possível da visão humana. Por esse motivo, somente há dois anos substituiu as câmeras analógicas pelas digitais, quando essas passaram a ter sensores do tamanho de um filme de trinta e cinco milímetros, que é o mais similar à visão humana, além de terem se tornado suficientemente pequenas. Para ele, o importante é ter sempre à mão instrumentos ópticos que mostrem o universo visível como imagem bidimensional.
Qual um astrônomo navegando pela noite, Tillmans busca fenômenos luminosos que possam estabelecer a posição relativa dos corpos entre si. Mas não encontra padrão nenhum: algumas fotos são repetidas em tamanhos diferentes e penduradas duas vezes, enquanto outras são dobradas e encapsuladas em molduras de acrílico, ou podem medir seis metros, e um grupo é abstrato, ou talvez nem tanto. Suas séries são embaralhadas por meio da disposição irregular das imagens em revistas, livros e espaços expositivos. Distorções aparentes e pontos de baixa resolução nas fotos evidenciam a artificialidade do meio óptico utilizado.
A diversidade de temas e imagens na produção de Tillmans afirma sua oposição à escola alemã de fotógrafos contemporâneos iniciada com Bernd Becher e Hilla Becher. Durante os anos 1970, o casal Becher desenvolveu a fotografia seriada como uma homenagem à Nova Objetividade da Alemanha dos anos 1920. Eles retomaram a foto tirada em ângulo frontal, característica da imagem de identificação da polícia e da ciência no começo do século XX, a mesma que foi posteriormente explorada pelos geômetras da vanguarda. As séries regulares de imagens, produzidas com uma geometria calculada, induzem a uma experiência de ordem universal. Mas Tillmans aborda uma realidade diferente.
A ciência recente propõe que o real é produzido por sequências de eventos submetidas a mudanças aleatórias. A natureza é catastrófica. Nenhuma série matemática regular pode ser um modelo adequado do universo, apenas uma possibilidade probabilística. Logo, a geometria linear da luz é um fenômeno raro, pois nos dá uma noção fugidia de posição no interior de um universo caótico. Por outro lado, qualquer tentativa de considerar as leis da luz como modelo absoluto para as séries de fatos reais é apenas uma ilusão.
A luz não é um ponto fixo na longa história do universo em expansão, mas pode guiar nossos dias. Nossas imagens formam nossas constelações, porém se metamorfosearão em algo novo nalgum momento imprevisível. Tillmans toma o mundo pelo que ele é.
Felipe Chaimovich, Hans Ulrich Obrist, Julia Peyton e Sophie O’Brien
Curadores
Pó de bronze sobre folhas de papel croquis
Ao colar papéis pintados no corredor ocupado pelo Projeto Parede, a artista paulista Flávia Ribeiro aproveita o movimento dos passantes para ativar a obra por meio do deslocamento de ar causado pelo trânsito do público. A tinta densa aplicada em ambos os lados de papéis diáfanos cria superfícies opacas que, ao serem sopradas pelo movimento dos transeuntes, se mostram ora coloridas, ora metalizadas.
Os trabalhos de Adriana Varejão resgatam e cruzam diferentes histórias, tecendo múltiplas narrativas e referências – da história da arte à arte religiosa, da azulejaria à cerâmica, da China ao Brasil, da iconografia colonial às imagens produzidas pelos viajantes europeus e à arte acadêmica do século XIX, da geometrização dos espaços arquitetônicos à abstração geométrica e à grade modernista, das paisagens e marinhas aos mapas.
Nesse repertório híbrido e polifônico, um elemento atravessa toda a obra de Varejão: o corpo, seja rasgado, cortado, dilacerado, esquartejado, seja em fragmentos, em pedaços. O corpo é revelado enquanto pele e carne da pintura, habitando os interiores da arquitetura e descoberto em suas ruínas; é, por fim, representado nas saunas, por metonímia
Se o corpo é o tema recorrente da obra, seu espírito é o barroco, cheio de curvas e dobras, excessos e ornamentações, exuberância e drama. Entretanto, o pensamento é mestiço – não é à toa que, em seus autorretratos, Varejão aparece como chinesa, moura e índia.
Há, sobretudo, uma preocupação em expor e conectar histórias marginais, agregando referências pessoais, literárias e ficcionais. História pode referir-se à ficção e não ficção, o que lança a pintura nos rumos da literatura. As histórias marginais são aquelas quase esquecidas ou colocadas de lado pela história tradicional, histórias profundas ou íntimas, mas também histórias contra a corrente, contadas às margens, histórias pós-coloniais, subalternas, fora do centro, histórias no Sul que, nesse sentido, ganham uma dimensão política.
Como a primeira exposição panorâmica de Varejão, a seleção dos trabalhos foi pensada para oferecer os melhores exemplos de todas as séries de trabalhos que Varejão produziu – Terra incógnita, Proposta para uma catequese, Acadêmicos, Irezumis, Línguas e Incisões, Ruínas de charque, Mares e Azulejos, Saunas, e Pratos.
Adriano Pedroso
Curador
O projeto DJ Residente cria trilhas sonoras para os espaços do Museu de Arte Moderna de São Paulo, conectando a música de vanguarda, eletrônica e experimental com a arte moderna. Em 2012, o projeto está sob curadoria do Circuito Fora do Eixo, uma rede de coletivos que trabalha com cultura independente no Brasil e na América Latina. Assim, a cada exposição, novos artistas são convidados a participar de um processo colaborativo, trocando conteúdo e conhecimento, que resultam em sonoridades originais para os espaços expositivos e as diversas áreas do museu.
Nessa edição, os convidados foram: Vivian Caccuri, Loop B e o Lavoura.
O retorno da coleção Tamagni: até as estrelas por caminhos difíceis
Que museu é este? O Museu de Arte Moderna de São Paulo, fundado em 1948, veio para a marquise do Ibirapuera em 1969, após a doação de todo seu patrimônio à Universidade de São Paulo, em 1963.
Depois da doação do patrimônio, o MAM vagou por diversos endereços, onde se reuniam membros da associação de amigos do MAM que teimaram em acreditar na sobrevivência de seu espírito, que de próprio guardara apenas o nome: Museu de Arte Moderna de São Paulo. Era um museu sem corpo.
Um desses amigos falecendo deixou a própria coleção para o MAM: Carlo Tamagni. Assim, em 1967, um conjunto de 81 pinturas, gravuras e desenhos transformou o MAM novamente em um museu com patrimônio artístico. Ainda sem casa, o museu mostrou a Coleção Tamagni em um saguão emprestado no Conjunto Nacional, na avenida Paulista. A exposição em que o MAM ressurgiu foi seguida do oferecimento deste pavilhão público na marquise do Ibirapuera, onde você está agora.
Desde então, o MAM compôs uma nova coleção, que hoje é de mais de cinco mil obras. Como um sobrevivente, o MAM pode arriscar-se até a incorporar obras que transformam a própria natureza do museu num lugar de encontro com o inesperado.
Esta exposição reúne documentos do período em que o MAM vagou por São Paulo em busca do próprio retorno, a Coleção Tamagni na íntegra e obras contemporâneas que desafiam o museu a renovar-se continuamente.
Felipe Chaimovich e Fernando Oliva
Curadores
DJ Residente
O projeto DJ Residente cria trilhas sonoras para os espaços do Museu de Arte Moderna de São Paulo, conectando a música de vanguarda, eletrônica e experimental com a arte moderna. Em 2012, o projeto está sob curadoria do Circuito Fora do Eixo, uma rede de coletivos que trabalha com cultura independente no Brasil e na América Latina. Assim, a cada exposição, novos artistas são convidados a participar de um processo colaborativo, trocando conteúdo e conhecimento, que resultam em sonoridades originais para os espaços expositivos e as diversas áreas do museu.
Nessa edição, os convidados foram: DJ’s Tudo, Noisy Loops e La Golden Acapulco
Itinerários e itinerâncias
Mais que uma exposição, o 32o Panorama é uma plataforma de discussão e decantação de processos artísticos. Trata-se de uma reflexão sobre o estado da arte contemporânea que pressupõe, especialmente na última década, um tempo cada vez mais acelerado. A consolidação de programas institucionais, desde a elaboração das leis de incentivo à cultura, a multiplicação de editais, projetos de residências nacionais e internacionais, além de um superaquecimento do mercado, interferiram e conviveram com transformações no fazer artístico.
Itinerários, itinerâncias aborda duas temporalidades: a resposta rápida, imediata a um percurso, e a decantação de processos a longo prazo, como residências, convivência em grupos, formação de redes. A exposição é uma das instâncias em que essa pausa se dá. Entre as propostas do Panorama 2011 está o convite para alguns artistas trabalharem em conjunto com o Educativo do MAM, visando discutir o papel do trabalho pedagógico em museus. Os educadores não são apenas prestadores de serviço e fornecedores de conteúdo para o público, mas agentes fundamentais na reflexão sobre os trânsitos entre os vários papéis que as pessoas assumem – artista, curador, visitante, educador – e do modo como a arte, ela mesma, possui um papel formador. Os artistas entram no papel de educadores e o Educativo no espaço da exposição.
Algumas questões centrais orientaram a pesquisa: Quando a itinerância entre os papéis de educador e de artista decanta experiências relevantes? Quando a itinerância decanta resíduos, restos, sobras e percursos? Quando a itinerância decanta tramas, redes, circuitos e colaborações? Quando a itinerância decanta trabalhos de arte e fatos estéticos? Em que medida a facilitação do deslocamento indiretamente proporciona uma homogeneização da produção contemporânea? Em que sentido o fluxo contínuo dilui algumas especificidades e identidades locais na arte contemporânea? A especificidade das artes visuais se desfaz na medida em que o artista contemporâneo viaja constantemente, trabalha com toda e qualquer matéria, tema ou ideia, assim como dialoga com o cinema, o som ou a literatura?
Em vista dessas questões, a curadoria investigou as noções de permanência e movimento na arte, bem como intensidades de tempo nas ações artísticas e posturas diante da urgência de se estar sempre em deslocamento. Mapear algumas noções de circulação e deslocamento na prática artística, do corpo dos artistas e do pensamento nos permite uma visão ampla da multiplicidade da arte no Brasil.
Cauê Alves e Cristina Tejo
curadores
Artistas: Alberto Bitar | Amanda Melo | André Severo e Maria Helena Bernardes | Ateliê Aberto | Breno Silva e Louise Ganz | Bruno Faria | Cadu | Capacete | Chiara Banfi e Kassin | Cildo Meireles | Detanico Lain | Ducha | Gaio Matos | GIA (Grupo de Interferência Ambiental) | Héctor Zamora | Jailton Moreira | Jarbas Lopes | Jonathas de Andrade | Jorge Menna Barreto | Letícia Cardoso | Lourival Cuquinha | Lúcia Laguna | Marcelo Coutinho | Marco Paulo Rolla | Nicolás Robbio | Oriana Duarte | Pablo Lobato | Paula Sampaio | Pedro Motta | Raphael Grisey | Raquel Garbelotti | Ricardo Basbaum | Rodrigo Bivar | Rodrigo Matheus | Romano | Sara Ramo | Virginia de Medeiros | Wagner Malta Tavares
Num ensaio escrito em 1939, Mário de Andrade assinala em Candido Portinari a união íntima do artista e do artesão, dando-lhe o nome de “plástica”. Dela se originam os dois elementos principais de sua personalidade artística: a riqueza técnica e a variedade expressiva. Em Portinari convivem o “artesão”, interessado em experimentar todos os processos, em desvendar todos os segredos do ofício, e o “artista”, capaz de infundir um sentido poético no que poderia ser um simples virtuosismo técnico.
Apesar de o crítico ter como parâmetro a obra do artista maduro, a análise da primeira produção portinariana (1920-30) permite afirmar que ambos os traços já se faziam presentes durante a aprendizagem e a formação. Nesse momento, o artista-aprendiz demonstra buscar a configuração de um léxico próprio, lançando mão de diversas fontes (Ingres, Zuloaga, Manet, Whistler, Sargent e Boldini, entre outros) e testando as possibilidades das diferentes linguagens artísticas (figura humana, cenas mitológicas e de gênero, paisagem, nu e, sobretudo, retrato).
Descrente de “escolas” e de “individualidades uniformes”, defensor do classicismo como “uma gramática”, como “um elemento de ordem”, o jovem Portinari embarca para a Europa em junho de 1929, animado por uma decisão inabalável: fazer da estadia a oportunidade para “observar, pesquisar, tirar da obra dos grandes artistas […] os elementos que melhor se prestem à afirmação de uma personalidade”. Fiel a esse roteiro, Portinari frequenta assiduamente museus e galerias, encantando-se com os exemplos de Giotto, Masaccio, della Francesca, Signorelli, Fra Angelico, del Castagno, Michelangelo, Leonardo, Veronese, El Greco e Goya. São em menor número os artistas modernos que despertam seu interesse: Modigliani, Matisse, Picasso e Carena.
A pequena produção europeia não significa, contudo, que Portinari não tenha afinado seu instrumental artístico e técnico. É o que demonstram as obras executadas a partir de 1931, nas quais estão presentes preocupações de caráter construtivo (geometrização, dinâmica espacial, agenciamento das figuras), aliadas a deformações anatômicas e a um gigantismo que se fundem harmoniosamente com o processo de racionalização. As inúmeras cenas brasileiras realizadas após o regresso ao Brasil, em janeiro de 1931, colocam-se sob o signo de uma ideia de pintura estimulada pela observação das obras de Veronese: a realização de “grandes telas, com muitas figuras agrupadas em enormes composições, com estruturas variadas”.
Tendo aprendido com Picasso que todos os estilos são contemporâneos, que o artista deve abrir-se para todo tipo de experimentação, transitando de um registro para outro, Portinari não hesita em inspirar-se nas lições dos primitivos italianos, combinadas ao uso de deformações expressivas, na realização dos Ciclos econômicos (1936-44) encomendados pelo ministro Gustavo Capanema para a sede do Ministério da Educação e Saúde. Entre 1936 e 1938, o artista realiza centenas de estudos em diferentes técnicas (crayon, têmpera, guache, carvão e aquarela, dentre outras) e experimenta escalas variadas, desde representações diminutas a desenhos em tamanho natural para transporte na parede.
Caracterizado pelo equilíbrio conseguido entre a deformação das figuras humanas e o rigor geométrico da composição, o primeiro empreendimento muralista de Portinari será seguido por outras obras de vastas dimensões. Dentre elas, destacam-se as quatro têmperas na Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso (Washington, D.C., EUA, 1941), nas quais o artista demonstra, mais uma vez, o próprio virtuosismo e a capacidade de experimentação, como assinala oportunamente Mário Pedrosa. Outra realização importante localiza-se na igreja de São Francisco de Assis da Pampulha (Belo Horizonte, 1944-5). Nesta, Portinari dá livre vazão a uma veia expressionista – temperada, porém, por uma concepção clássica, que Sérgio Milliet reporta a uma “humanização do cubismo”, em virtude do equilíbrio entre uma estruturação geométrica fluida, mas rigorosa, e a deformação expressiva das figuras.
Portinari leva sua experimentação também para o campo das artes aplicadas, como demonstram os azulejos executados para o exterior do Ministério da Educação e Saúde (1941-4), caracterizados pela superposição de planos. Outro exemplo são os azulejos da igreja de Belo Horizonte, em que o artista joga com dois registros: sintético e simplificado no batistério; expressionista no exterior, de maneira a criar uma continuidade com o painel do altar.
É esse artista múltiplo que o Museu de Arte Moderna de São Paulo apresenta na exposição No ateliê de Portinari: 1920-45, norteada pelo objetivo de apresentar ao público os dois aspectos centrais da poética do artista: processos compositivos e recursos estilísticos variados, que incluem experiências com a abstração, veementemente criticada por ele.
Annateresa Fabris
curador
A ecologia e a sustentabilidade ocupam hoje uma desejável centralidade no campo das construções. Enfatiza-se, sobretudo, a volta às formas da tradição e o recurso a novas tecnologias de reaproveitamento e geração de energia. Sem desconsiderar tais vetores, Razão e ambiente coloca o foco na ruptura estética e criação arquitetônica como aliados primordiais para uma ocupação racional e não-predatória das paisagens urbanas e do próprio ambiente.
A sede da Associação Brasileira de Imprensa dos irmãos Roberto (1936-8), o primeiro prédio modernista em grande escala produzido no país, notabilizou-se pela estética arrojada e pela busca do conforto ambiental. As fachadas orientadas para norte e noroeste foram protegidas por brises-soleil verticais e um corredor com paredes de vidro, abertas apenas em sua parte superior, funcionava como anteparo para o ar quente. Apesar da ampla utilização de meios mecânicos de climatização, a partir dos anos 1960, haver permitido, com altos gastos energéticos, ignorar tais cuidados, projetos mais atentos a questões ecológicas continuaram a usar componentes da própria arquitetura para o controle da luz, umidade e temperatura.
Razão e ambiente apresenta 21 obras contemporâneas que, de modos diversos, contribuem para a qualidade de vida e preservação ambiental e homenageia as figuras pioneiras de Lina Bo Bardi (1914-92), Lúcio Costa (1902-98) e Sérgio Bernardes (1919-2002). Nenhum dos três se conformou aos cânones modernos ortodoxos, fundando, cada um a seu modo, uma tradição de rupturas cujo conhecimento muito tem a contribuir para uma prática arquitetônica atual, criativa e responsável.
Lauro Cavalcanti
Curador
Morada ecológica sedimenta seu eixo curatorial, concebido por Dominique Gauzin-Müller, na arquitetura que trilha a defesa do meio ambiente por meio de projetos que podem ser qualificados como ecológicos, verdes e sustentáveis.
A mostra sela parceria entre o MAM e a Cité de l’Architecture et du Patrimoine parisiense, instituição referencial nessas duas áreas e organizadora de Morada ecológica. Dominique Gauzin-Müller apresenta precursores da arquitetura moderna como autores de projetos decisivos em sua relação com a natureza. Frank Lloyd Wright (1867-1959) e Alvar Aalto (1898-1976), por exemplo, são considerados realizadores de uma arquitetura “orgânica”, integrando a edificação e a natureza, além de utilizarem materiais como madeira e pedras.
O foco de Morada ecológica não se está nas propostas pioneiras de arquitetos históricos. Nomes fortes da contemporaneidade nesse campo, como o chileno Alejandro Aravena, Leão de Prata na Bienal de Veneza em 2008, e a dupla radicada em Paris Jakob + MacFarlane tem projetos exibidos na coletiva. Numerosos profissionais jovens também ganham a oportunidade de ter a obra discutida e surpreenderão o público brasileiro com suas produções.
Dominique Gauzin-Muller
Curador
O Projeto Parede de Yiftah Peled une arquitetura e imagens de pele humana. O espaço é transformado em um orifício onde o visitante entra, tornando-se um performer ao passar pelo corredor.
Lixas vermelhas estão coladas na parede. O piso é revestido por uma composição de imagens a partir de fragmentos da pele do artista e dos funcionários do museu. O projeto inclui a participação de funcionários de todos os setores museológicos. A composição evoca o museu como um organismo que, mais do que uma forma arquitetônica ou um espaço expositivo de paredes brancas, é um lugar constituído por pessoas que nele interagem, e uma composição humana que se torna complexa no encontro com o visitante.
Dessas operações surge um local de “especificidade humana” (human specific). A obra pode também ser considerada como um alerta sobre a suposta neutralidade das paredes nos espaços expositivos, envolvendo o risco do contato do corpo com a lixa no ato de caminhar dos visitantes. Consumir e ser consumido tornam-se, assim, atos complementares.
Judith Lauand é bem mais que concreta. É também experimental, pop, política, abstrata geométrica, mas, sobretudo, inquieta, como é possível observar nas mais de cem obras desta mostra antológica, Judith Lauand: experiências.
São pinturas em óleo, acrílica, esmalte e têmpera, desenhos, guaches, colagens, xilogravuras, tapeçarias, bordados e esculturas produzidos entre 1954 (ano de sua adesão ao concretismo) e os anos 1970, quando a artista passa a produzir uma pintura ainda geométrica, porém mais solta, em que a cor se sobrepõe ao desenho.
Nada mais justo que esta homenagem aconteça no MAM, estreitando um relacionamento que já dura seis décadas. Tudo começou em 1952, quando o MAM, ainda instalado na rua Sete de Abril, abrigou a mostra Jovens pintores da Escola de Belas-Artes de Araraquara. Era a estreia de Lauand na capital paulista.
A artista também esteve presente em exposições históricas no museu, como a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta (1956), que marcou o surgimento oficial da poesia concreta no Brasil, e a 1ª edição do Panorama da Arte Atual Brasileira (1969), evento criado pela então diretora Diná Lopes Coelho (1912-2003) como estratégia para a ampliação e renovação do acervo da instituição por meio de prêmios aquisição e doações. Naquele ano, a artista colaborou com a iniciativa, doando ao museu a tela Stop the war (1969).
Depois de um hiato de trinta anos, Lauand voltou a figurar em mostras importantes no museu, como Arte construtiva no Brasil: coleção Adolpho Leirner (1998), Paralelos: arte brasileira da segunda metade do século XX em contexto, coleção Patricia Cisneros (2002) e Concreta’56: a raiz da forma (2006). Em 2008, foi convidada a participar do Clube de Colecionadores de Gravura do MAM, para o qual autorizou a reimpressão de uma xilogravura dos anos 1950, cuja matriz doou ao acervo do museu.
Judith Lauand retorna agora na maior exposição já realizada sobre sua carreira. Mais que uma retrospectiva, esta é uma mostra prospectiva, pois indica as muitas possibilidades que uma vida dedicada à arte pode oferecer.
Celso Fioravante
Curador
No momento em que o Brasil experimenta a transição democrática da Presidência da República, o Museu de Arte Moderna de São Paulo apresenta uma seleção de seu acervo para refletir sobre as expectativas para o país. Seguimos uma linha reta ou vivemos imersos na informalidade?
Desde os anos 1950, a abstração geométrica implantou-se entre nós como sinônimo de uma arte universal. A racionalidade abriria os caminhos para o desenvolvimento nacional. Brasília foi a maior das realizações dos geômetras brasileiros e atestou a vocação nacional para um construtivismo capaz de vencer até o árido vazio do cerrado.
Entretanto, a incerteza, o acaso e as singularidades logo apareceram, desviando o rumo triunfante do construtivismo desenvolvimentista que havia criado a nova capital federal do nada. A realidade de nossa história tem sido feita de avanços e recuos, hesitações e utopias.
Reunimos aqui cerca de oitenta obras que criam uma tensão entre a ordem geométrica e a desconstrução informal. Desse contraste, vai-se fazendo o Brasil.
Felipe Chaimovich
Curador
Como a arte contemporânea olha para o mundo? A exposição Um outro lugar apresenta um novo ponto de vista sobre o presente, diverso daquele gerado na modernidade, do ideal utópico de progresso, que guiava a vida dos homens rumo ao futuro. A partir do final da Guerra Fria, surgem novas formas de pensar o tempo e as relações políticas que buscam transformar o mundo. O abandono das grandes ideologias político-partidárias leva a uma nova escala de ação sobre a sociedade: as micropolíticas, que atuam pontualmente sobre o cotidiano.
Um outro lugar reúne obras de 22 artistas, realizadas ao longo da última década por uma geração que “cresceu” à luz das mudanças ocorridas na passagem do século XX para o XXI. A mostra apresenta a possibilidade de instaurar um outro lugar dentro do mundo em que vivemos – não mais aquele outro lugar utópico, da modernidade, tampouco uma relação complacente ou cínica com a realidade tal como está dada hoje, mas sim um terceiro lugar, criado a partir de uma vontade de repensar o já estabelecido. São colocadas novas formas de contar o tempo, de traçar a cartografia geopolítica, de perceber o modo de viver nas cidades, pequenas subversões diante do império da sociedade de consumo, pequenos gestos ligados à transformação do presente, e não a um futuro sempre inalcançável.
Luísa Duarte curadora
Você tem fome do que?
A alimentação é um problema mundial que afeta particularmente o Brasil. Por outro lado, o mercado de biocombustíveis compete por espaços com as plantações de comida. Como Brasil é uma potência agrícola, a disputa torna-se acirrada: nossa prioridade é alimentar o planeta ou substituir o petróleo por álcool e biodiesel?
Para refletir sobre o desafio agrícola contemporâneo, foram reunidos no parque do Ibirapuera nove criadores de jardins em torno ao tema da alimentação. Criaram-se espontaneamente duas interpretações sobre o assunto entre os participantes: alimentação do corpo ou do espírito. A questão foi enfrentada poeticamente, ampliando as possibilidades de reflexão sobre os desafios da alimentação mundial.
A parceria com o Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire possibilitou um intercâmbio com a França, país de longa experiência em jardinismo. Paisagistas europeus foram convidados para criar seis jardins, juntamente com três artistas brasileiros que executam suas primeiras obras de jardinagem.
Ao passear pelo festival, o público irá deparar-se com os diversos jardins que interromperam a paisagem horizontal do Ibirapuera. Assim, o visitante identifica a artificialidade do cultivo agrícola, pois cada jardim cria um mundo particular em meio ao amplo parque.
A alimentação depende do domínio da tecnologia e de seu uso transformador da natureza em artifício. Somos responsáveis pelo uso contemporâneo da Terra para alimentar a humanidade. Perceber responsabilidade exige a distinção entre cultivo e natureza.
Felipe Chaimovich
Curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo
O Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire
Criado em 1922, o festival é instalado à sombra do castelo de Chaumont-sur-Loire com o objetivo de evidenciar a riqueza e a diversidade da arte dos jardins de hoje e demonstrar a abundância de tendências nesse campo.
Nossos jardins efêmeros são renovados anualmente a partir de um tema, ensejando a realização de um concurso internacional. A escolha dos paisagistas, a criatividade e a diversidade das técnicas e das propostas apresentadas, assim como o entusiasmo exponencial do público pela natureza e pelos jardins, fazem de Chaumont um lugar de encontros especiais, um canteiro de talentos e de ideias novas.
Juntamente com o festival, o parque de paisagens, o vale de brumas, a senda dos ferros selvagens, a horta biológica e o jardim infantil propõem ao público jardins permantentes que, evoluindo ao longo das estações, valeram a Chaumont o título de “jardim notável”.
Desde 2008, o festival está inscrito em um Centro de Artes e Natureza que desenvolve um projeto de arte contemporânea que permite acolher anualmente no Domaine, desde então propriedade da Région Centre, vinte exposições e instalações de artistas vindos do mundo inteiro.
É uma grande honra para o Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire ser convidado do Museu de Arte Moderna de São Paulo. A melhor resposta a esse convite é levar ao Brasil grandes paisagistas franceses da atualidade. Luis Benech, Michel Racine & Béatrice Saurel, Christine & Michel Péna, Dimitri Kenakis & Maro Avraboum Erik Borja e Florence Mercier conceberam para o parque Ibirapuera, com muito entusiasmo e imaginação, jardins sobre o tema da alimentação, essencial para o mundo de hoje e de amanha.
Chantal Colleu-Dumond
Diretora do Domaine e do Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire
Raymundo Colares foi um artista único na cena experimental da arte brasileira do final dos anos 1960. O rigor formal da tradição construtiva aliou-se nele ao ruído urbano e expressivo da nova figuração e à urgência comunicativa da arte pop.
No catálogo da exposição Nova objetividade brasileira (1967), que foi a estreia de Colares na cena artística, Hélio Oiticica redige uma espécie de manifesto pós-neoconcreto, levando em consideração os desdobramentos experimentais da arte brasileira recente dentro de um momento político específico: o golpe militar e a intensificação da resistência política e contracultural. Ele divide o texto em seis itens que resumiriam as principais tendências poéticas presentes naquela exposição. Quatro delas parecem-me determinantes para a compreensão do desenvolvimento da obra de Colares: a vontade construtiva, a chegada ao objeto, a participação do espectador e a rebeldia dadá. Quase toda a sua obra cabe aí.
Em Colares, a apropriação de uma geometrização concreta do espaço pictórico dar-se-ia através de um olho atravessado pela estrutura visual das histórias em quadrinhos e pela confusão sedutora da desordem urbana, metaforizada pela fragmentação dos ônibus cortando o campo perceptivo. De início eles se compunham numa narrativa costurada por uma polifonia espacial, justapondo perspectivas, movimentos e planos de cor. É uma narrativa visual que não se desdobra no tempo, mas se fragmenta no espaço, multiplicando os dados perceptivos na vertigem de um corpo atravessado pela confusão da cidade.
Entre 1966 e 1970, ano em que ganhou o prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional de Arte Moderna, sua obra teve um desenvolvimento espetacular. Do movimento virtual das pinturas dos ônibus, passando pelas trajetórias em metal e chegando às páginas de cor multidirecionais dos Gibis, o que se percebe na poética de Colares é uma coerência plástica notável.
Entre 1971 e 1973, viveu em Nova York, Milão e Trento. De volta ao Brasil, passando por dificuldades financeiras e psicológicas, afastou-se do circuito de arte. Apenas no começo da década de 1980 iria retomar a carreira. O lance trágico viria em seguida. Depois de uma longa relação poético-visual com os ônibus, acabou atropelado por um deles. Recuperando-se em Montes Claros, morreu em 1986 queimado na cama do hospital em um incidente até hoje sem explicação.
A obra de Colares tem um lugar especial na história da arte brasileira, como um elo singular de ligação entre a pintura moderna, a vontade construtiva, a tendência experimental e o amor ao mundo.
Luiz Camillo Osório
Curador
O ambiente de Ernesto Neto convida ao encontro. Diversas ilhas de convivência escorrem de um teto contínuo de crochê, formando diferentes situações coletivas: uma praça com bancos, uma sala de música, uma biblioteca. Nunca estamos isolados: há sempre lugar para mais alguém, mesmo que ainda não tenha chegado.
A estrutura tecida leva o visitante de uma ilha a outra, como se o museu fosse um grande rio abraçado por uma tarrafa oceânica. A paisagem vai se definindo conforme avançamos, pois cada agrupamento tem cores específicas, cheiros próprios, sons peculiares.
A obra de Ernesto Neto expande a forma dos objetos escultóricos para a experimentação sensorial, pois às vezes lhes esticamos as partes, outras nos sentamos sobre suas gotas, ou enfiamos o nariz em seus perfumes. O material elástico de redes e membranas que compõe a instalação é assim contaminado pela vida do público. Gentil e suave, Dengo é um convite ao mergulho numa forma incapturável, cuja liberdade está em mudar a cada novo encontro conosco.
Ernesto Neto e Felipe Chaimovich
Curadores
Pele é uma padronagem, à primeira vista decorativa, que num olhar mais aproximado desvenda seu elemento-chave: patas de galinha. O conforto da estética doméstica dá lugar ao incômodo pela utilização da matéria orgânica repugnante como elemento gráfico, explorado em multiplicações fractais. Assim como a memória – que às vezes nos transporta a espaços particulares de deslumbramento, às vezes nos lança a ocorrências pessoais violentas e dolorosas – a percepção de Pele provoca uma sensação de atração e repulsa, identidade e estranhamento.
Este trabalho é um desdobramento da série Toalhas, realizada entre 1996 e 1997 para a 6ª Bienal de Havana, onde foram desenvolvidas cinco estampas diferentes. Tendo como referência as toalhas de mesa populares impressas em linóleo, distribuídas a metro em milhões de lares no decorrer de décadas e utilizadas como suporte de incontáveis rituais domésticos em torno da mesa, o trabalho questiona o que retemos desses encontros. Cada uma das estampas é composta por sobras da mesa, como vegetais mofados, frutas podres, flores murchas, cinzeiros sujos e as patas de galinha reutilizadas em Pele.
A paixão pelos mistérios da fotografia levou o casal Michel e Michèle Auer a se lançar, há quarenta anos, na aventura de constituir uma das mais prestigiosas e importantes coleções privadas do mundo. O MAM tem o privilégio de mostrá-la, pela primeira vez fora da Europa, em virtude das comemorações do Ano da França no Brasil.
Essa aventura tem seu centro irradiador justamente na França, país onde a fotografia foi inventada em 1839 e palco dos principais movimentos artísticos de vanguarda do início do século XX. Esses movimentos deram à arte e à fotografia, em particular, um caráter mais experimental.
Composta por obras produzidas ao longo de toda a história da fotografia, Olhar e fingir apresenta uma seleção de quase trezentas das cerca de 50 mil obras da coleção. As fotografias estão dispostas em quatro módulos, que trazem à tona experimentações, rupturas e revisões da função da fotografia, rompendo com a ordem cronológica para reapresentá-las a partir de conexões que tem a transgressão como fio condutor. Os módulos são: Transfigurações, Beleza convulsiva, Performance e Fantasias formais.
A curadoria procurou selecionar obras geradas a partir da inquietação de artistas que expandiram o repertório da fotografia para além de sua função documental. As obras expostas fizeram a fotografia alçar voo rumo à subjetividade e a complexidade da representação até a conquista de sua autonomia como expressão artística. Ao invés de mimetizar a realidade, estas fotografias propõem encenações, pontos de vista inesperados e experimentações sobre o registro fotográfico que apresentam aos nossos olhos a visão do fantástico.
Olhar além do aparente. Fingir, criar ficções a partir dos vestígios captados na realidade, para representar um mundo paralelo, não visível, no qual o homem possa investigar seus desejos, fantasias e inquietações. Olhar e fingir é a fotografia em estado transgressivo e questionador.
Elise Jasmin e Eder Chiodetto
Curadores
A sede do MAM está temporariamente fechada em virtude da reforma da marquise do Parque Ibirapuera.
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