Habituada a lidar com a história, o colecionismo e a acumulação de conhecimentos, Mabe Bethônico não se restringe a fazer algo no corredor de ligação do MAM. Ela vai além do contemplativo. Depoimentos podem ser ouvidos entre as estantes deslizantes da biblioteca. Um audiobook fica sobre a mesa. Uma trilha está instalada atrás das mesas das bibliotecárias. Algumas extensões da obra escapam e vão para o parque. Sinalizações estão espalhadas pelo museu, incluindo um mapa do acervo da biblioteca, que ocupa estrategicamente as paredes do corredor. “O que me interessa é a história da constituição da biblioteca do museu”, comenta a artista.

Na tradição do pensamento ocidental, é recorrente a ideia de que a arte é apenas ilusão. Em vez de revelar o mundo que está aqui, ela o encobriria e nos afastaria dele. A ciência seria então a única maneira de garantir acesso verdadeiro às coisas. O pensamento científico tenta explicar tudo a partir de teorias racionais. Mas a arte permite um outro contato com o mundo. Diversamente da compreensão científica, a aproximação de uma obra de arte se dá antes de tudo pela percepção, que é sempre indeterminada e ambígua.

A arte nos permite reatar o contato direto com o mundo antes de fazermos qualquer reflexão ou análise. Com a arte, aprendemos a retornar às coisas, aos fenômenos que observamos, e podemos descrevê-los tais como os percebemos. Essa percepção não pode ser substituída pelo pensamento, nem derivada de uma teoria. A arte brasileira, em especial nas décadas de 1950 e 1960, foi discutida sob essa ótica. O módulo Origens aborda parte desse debate. Não podemos perceber a arte a partir de uma ideia pré-concebida do que ela seja. Por isso, podemos vê-la cada vez de uma maneira diferente e sob uma nova perspectiva. Desdobramentos posteriores da arte nos mostram que transformar a arte percebida em ideia, em representação mental, seria atrofiar a arte. O mesmo se pode dizer do Corpo. É com o corpo que percebemos a arte, mas o que sentimos no corpo não são apenas sensações exteriores a nós ou ideias internas construídas pela nossa consciência.

Nenhuma visão ou percepção da arte pode esgotá-la de uma vez por todas, nem abarcá-la completamente. Toda obra de arte é interminável; ela se oferece a nós parcialmente. Ela pode nos proporcionar sempre uma próxima experiência, um infinito recomeço. Essa experiência não pode ser dissociada do tempo, já que o nosso contato com ela acontece no tempo e na história. Quando voltamos ao museu e revemos uma obra podemos participar dela de uma maneira diferente. Mas é preciso cuidado: o retorno ao museu não deve ser uma obrigação, nem o contato com a arte burocrática, senão extirpamos o que a arte propicia de melhor – a singularidade da experiência. A experiência da arte pode nos dar acesso pleno ao mundo.

Cauê Alves
Curador

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Por uma questão de justiça poética, já que o artista partiu tão cedo, as telas de Jorge Guinle decidiram permanecer jovens. Fisicamente até, elas passam a impressão de tinta fresca. Irradiam sempre a mesma vontade de pintar, a mesma vontade de viver, continuam a provocar, a agradar e a desagradar.

Passados vinte anos de seu desfecho prematuro, a obra de Jorge Guinle tornou-se quase sinônimo de pintura brasileira contemporânea. Ela traduz à perfeição a forma convulsa do mundo atual: belo caos.

Jorge Guinle vivia a pintura com tal intimidade que a fronteira entre vida e arte era quase indistinta. Passional, Guinle pintava a tela no chão, girando-a em todos os sentidos, ora relaxado, ora frenético, como se não fosse possível, nem desejável, acabar o quadro. O colorista virtuoso errava ao acaso pelo perímetro do quadro, com alegre desenvoltura ou angústia manifesta. Sempre haveria a próxima tela.

Enquanto atacava a tela, Jorge Guinle podia evocar Matisse ou De Kooning. Artistas de sua geração, como Julian Schnabel, Anselm Kiefer e Georg Baselitz, forneciam-lhe estímulos que redesenhavam um mapa da contemporaneidade onde a pintura voltava a ser relevante. Em comum, havia o desafio da revitalização do instinto de pintura. Jorge Guinle não se furtou a esse desafio.

Um mérito incontestável na curta e fulgurante trajetória artística de Jorge Guinle foi o de liberar a pintura brasileira da tradição modernista. O artista tinha muita familiaridade com essa tradição, por sua educação francesa, mas era dotado da nativa desinibição ianque, que lhe permitia assimilar os opostos e contrários inerentes à vida contemporânea. O produto final era brasileiro, desprovido da inércia da tradição e do espírito competitivo estressante.

Jamais tantas telas e desenhos de Jorge Guinle foram reunidos num mesmo lugar. Somente agora eles confrontam a dimensão pública que sempre perseguiram. Com esta exposição, os curadores buscam recuperar o processo histórico e cultural em que a obra de Jorge Guinle está inserida. Com seus títulos divertidos ou tocantes, suas pinceladas aleatórias ou intencionais, as pinturas de Guinle deflagram o belo caos, abrindo um mundo à nossa frente e falando de uma vida que merece ser vivida.

Vanda Klabin e Ronaldo Britto
Curadores

Os sessenta anos do Museu de Arte Moderna de São Paulo foram considerados pela curadoria como uma oportunidade para propor uma reflexão sobre o significado da legitimação institucional de dois conceitos problemáticos: moderno e contemporâneo. Por acreditarem que a noção de moderno é imprescindível para compreender a produção contemporânea, os curadores, a partir da coleção do museu, escolheram dois eixos paradigmáticos: opacidade e polifonia.

A noção de opacidade aponta para uma zona de atrito entre a arte e o universo unidimensional da comunicação e, sobretudo, para a ruptura promovida pela pintura, desde fins do século XIX, com o ilusionismo inerente à concepção espacial herdada do Renascimento. A idéia de polifonia, por sua vez, remete a múltiplas possibilidades de manifestação do acontecimento artístico, liberto da obrigação de responder a um único modo de ser.

A travessia do moderno para o contemporâneo, pensada a partir do questionamento da forma e da expansão do campo de atuação das artes visuais, encontra duas figuras emblemáticas na coleção do MAM: Alfredo Volpi e Flávio de Carvalho. A partir deles, as noções de opacidade e polifonia são expandidas, de maneira a abarcar artistas de diferentes gerações, que compartilham não apenas o interesse pela arte como campo experimental, mas igualmente uma interrogação sobre a natureza do moderno e do contemporâneo.

Além de Volpi e Carvalho, que ancoram a exposição, outros artistas foram considerados nucleares, por proporem percursos não-lineares no âmbito do moderno e do contemporâneo: Lívio Abramo, Almir Mavignier, Mira Schendel, Leonilson, León Ferrari, Geraldo de Barros, Thomaz Farkas e German Lorca. Se também eles são pontos de partida para o estabelecimento de diálogos poéticos com artistas de diferentes procedências, sem qualquer preocupação de caráter cronológico ou de determinação de filiações, existem na exposição dois núcleos temáticos – modernismo e nova figuração –, cuja presença se justifica pelo fato de terem representado momentos emblemáticos na história da arte brasileira no século XX.

Embora de maneira não linear, MAM 60 articula uma narrativa sobre os diversos estágios da instituição, por meio de obras que integraram o acervo desde sua fundação e de um conjunto de documentos. Graças a esse cruzamento, o público terá oportunidade de conhecer uma história complexa, pontuada pela busca de uma identidade, pela perda de rumos e pela descoberta de um novo modo de ser, para o qual o contemporâneo acabou se tornando a dimensão principal.

Annateresa Fabris, Lisette Lagnado e Luiz Camillo Osorio
Curadores

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A pergunta que se coloca com insistência é: como se reapropriar da história se ela nos parece tão distante, caótica, fragmentada e imaterial, chegando até nós em sequências que duram três minutos? Assumir como estratégia este dilema (reencenar ou repetir?) parece ser uma opção das mais legítimas. Ao recriarmos algo (uma canção, um filme, um videoclipe, uma obra de arte, um “evento”), ganhamos uma chance de reconciliação com o passado e, acima de tudo, a rara oportunidade de experenciá-lo no presente.

O projeto Cover se situa no campo de tensão determinado pelos embates entre reencenação e repetição na produção contemporânea. Esses procedimentos não se limitam a uma intenção de imitação, muito menos de “apropriação”, pois nesse caso poderiam ser facilmente incorporados como ações já mapeadas pela história.

Esta mostra coletiva e suas ações paralelas (a publicação de um livro, projeção de filmes no auditório do MAM, performances sob a marquise do parque, oficinas no Educativo, o show da banda Os Macaco, a festa bum bum do músico Matias Aguayo no clube Vegas) lança um comentário em direção ao sistema da arte e marca um posicionamento em relação ao estado das coisas hoje.

Cover pretende ser o diagnóstico de uma estratégia adotada por artistas. Neste sentido, propõe-se a captar uma sensibilidade que a um só tempo elogia e critica. É homenagem e ataque. Fascínio e deboche.

Não se almeja fazer um mapeamento do cover como gênero ou como objeto. Também não se trata de buscar algo de “artístico” no cover. Ele é entendido como um lugar a ser habitado, uma ferramenta, um dispositivo a ser, mais do que utilizado, questionado e reinventado pelos artistas – que aqui nos propõem respostas, a maioria delas inéditas, ao desafio proposto por esta curadoria. Para além de um movimento em direção ao passado, Cover é sua convocação e tentativa de atualização em outro contexto: o espaço e o tempo do presente. No limite, uma incisiva operação antinostalgia.

Fernando Oliva
Curadora

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Em cima da sua Prostituta da Babilônia − uma moto velha BMW, que só pegava depois de muitas aceleradas −, Walter Smetak percorria as ruas de Salvador. Músico, filósofo, artista plástico, homem de teatro, lunático, poeta e, sobretudo, professor, Smetak cruzou fronteiras musicais, místicas e estéticas. Fez muita coisa a um só tempo.

As plásticas sonoras refletem sua tendência de integrar artes e conhecimentos. Da mistura da música com as artes plásticas, Smetak propõe uma imersão no mistério do som. Constrói novas instâncias de percepção e cria híbridos de instrumento e escultura. São instrumentos que despertam novas faculdades de percepção.

Walter Smetak desconstrói a música para alcançar o som. Do som surge a forma que avança no tempo e no espaço para fundar uma arte espiritual transformadora de mentes, cabaças e cabeças.

A obra foi criada para ser tocada pela imaginação, ou, como dizia Smetak, para ser ouvida com o olho, uma vez que o seu som é virtualmente invisível.

A exposição Smetak: Imprevisto foi idealizada a partir dos vestígios deixados pelo artista em páginas datilografadas e nos inúmeros rolos de gravação das suas experiências sonoras. Propõe-se, assim, um retorno ao espírito almejado pelo artista: manter abertas novas possibilidades de diálogo, estimular novas reflexões, proporcionar releituras imprevistas e atuais.

Jasmin Pinho e Arto Lindsay
Curadores

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Café com nanquim, canetas hidrocolor, material de colagem, cola, papéis, partituras de música, páginas de livros e pastel oleoso.

A proposta de Artur Barrio para o Projeto Parede tem algo de similar aos trabalhos que o artista vem apresentando em outras instituições desde os anos 1970. Materiais como café, vinho, areia, carvão e prego são utilizados para criar tensão e ruído no espaço.

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Marcel Duchamp deixou legado na América do Sul? Durante sua estadia em Buenos Aires, entre 1918 e 1919, o artista produziu uma obra questionadora da perspectiva. Esse questionamento também está presente na exposição que Duchamp planejou para inaugurar o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1948. Embora essa mostra nunca tenha ocorrido, o MAM São Paulo foi fundado e abrigou sempre exposições com obras também questionadoras da perspectiva.

A perspectiva é baseada na concepção do espaço universal como uma esfera. Assim, a origem de tudo seria um ponto de “energia”, do qual se irradiariam linhas retas em todas as direções, formando, pois, um universo esférico. Em 1420, em Florença, Bruneleschi e Masaccio chegaram a uma representação gráfica da teoria do espaço esférico: se traçasse um desenho ordenado a partir de um ponto para o qual convergissem todas as retas, o plano desenhado equivaleria à base de um cone ou de uma pirâmide vistos “de fora” do espaço esférico, em direção ao ponto central; se o volume das figuras nesse desenho seguisse a lógica de um espaço cônico ou piramidal, essas figuras pareceriam se distribuir em planos que diminuem proporcionalmente, conforme se aproximam do centro, chamado ponto de fuga.

A invenção da fotografia contribuiu para a difusão do modelo espacial da perspectiva: a geometria da câmara fotográfica obriga todos os raios de luz a passarem por um único orifício, reconfigurando-os como cone ou pirâmide no plano sobre o qual formam a imagem registrada fotograficamente. A fotografia, assim como a perspectiva, segue a geometria esférica do espaço.

A crise da perspectiva fazia parte do debate da arte moderna, do qual Duchamp participava no início do século XX. Movimentos como o futurismo, o cubismo e o construtivismo propunham representações de espaços distintos do esférico. Ao fazerem isso, rompiam com o ilusionismo tridimensional conseguido com o modelo de Bruneleschi e Masaccio. No plano do desenho ou da fotografia desses modernistas, só se veriam coisas planas. Criticavam, assim, o uso da perspectiva como algo natural.

Desde sua fundação, em 1948, o Museu de Arte Moderna de São Paulo expôs e colecionou artistas que buscam novos sistemas de representação espacial, reagindo contra a perspectiva geométrica. Tal história nos conecta às relações sul-americanas de Duchamp. Revisitar obras brasileiras que respondem a tal herança nos ajuda a definir um sentido profundo da arte moderna e deste museu que Duchamp ajudou a fundar.

Felipe Chaimovich (curador-chefe do MAM São Paulo)

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