Maria Martins: metamorfoses

Maria Martins: metamorfoses

10 jul 13 – 15 set 13
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Em 22 de março de 1943, Maria Martins inaugurou sua terceira exposição individual, na Valentine Gallery, em Nova York. Maria: New Sculptures dividia o espaço da galeria com Mondrian: New Paintings. Às límpidas linhas verticais e horizontais, então coloridas e fragmentadas de Mondrian, Maria contrapunha suas escuras formas enredadas. Era a Amazônia que ela buscava figurar nesta mostra, não apenas em imagens, mas também em palavras: para acompanhar a exibição das peças, preparou um catálogo, em inglês, no qual narrava brevemente os mitos que envolviam as oito personagens apresentadas: Amazônia, Cobra Grande, Boiúna, Yara, Yemenjá, Aiokâ, Iacy e Boto.

Este conjunto de esculturas demarca uma mudança decisiva na concepção formal dos trabalhos de Maria Martins. Se antes suas peças tendiam a uma representação mais tradicional da figura humana, com contornos definidos, agora suas personagens, embora ainda reconhecíveis, se fundem a um emaranhado de folhas e galhos que fazem as vezes da floresta tropical. A figura humana começa, a partir de então, a se integrar à natureza, confundindo-se com esta e, em última instância, metamorfoseando-se nela.

Esta exposição busca flagrar as contínuas transformações da forma ao longo do desenvolvimento artístico de Maria Martins, não apenas nas esculturas, mas também nas pinturas, nos desenhos, nas gravuras que com aquelas dialogam. A ideia é mostrar como a desfiguração do humano, nesta obra, é sempre já o início da figuração de outra forma, que se aproxima ora do vegetal, ora do animal. Para tal, dividiu-se a exposição em cinco núcleos – Trópicos, Lianas, Deusas e Monstros, Cantos, Esqueletos − determinados a partir de uma comunicação formal antes que cronológica. Os núcleos não se pretendem estanques, mas, pelo contrário, fluidos (a metamorfose não tem fim). Há obras que se encontram nas passagens de um a outro, que oscilam entre cá e lá.

Pontuam a exposição citações de Euclides da Cunha, Alberto Rangel, Mário de Andrade, Raul Bopp, Flávio de Carvalho e Clarice Lispector. Quer-se, com elas, mostrar como a obra de Maria Martins estava em sintonia com todo um pensamento brasileiro moderno (não só modernista) da forma como formação incessante.

Completando a exibição das esculturas, das pinturas, dos desenhos e das gravuras, apresentam-se uma joia desenhada por Maria Martins e uma série de 17 cerâmicas, que pertenciam à sua casa de Petrópolis. A atividade da artista como escritora também está aqui contemplada, com seus três livros e os artigos publicados por ela no Correio da Manhã, estes últimos praticamente desconhecidos atualmente.

Trópicos
Antes da exposição de 1943, Maria Martins já vinha voltando sua atenção para temas brasileiros, mas ainda moldava seus Samba, Negra, Yara em formas convencionais. Obras como Yemenjá e Iacy, aqui exibidas, já sinalizam o entrelaçamento do elemento humano ao vegetal, embora as figuras representadas sejam ainda claramente discerníveis. Na passagem para o núcleo seguinte, N’oublies pas que je viens des tropiques e Glèbe-ailes, muito parecidas entre si, são variações de um corpo em plena transformação.

Lianas
Neste segundo conjunto de esculturas, há certa concentração nos elementos que eram secundários no primeiro: as formas enredadas que circundavam as figuras principais. Em Comme une liane, é a própria figura feminina que tem seus membros convertidos em algo semelhante a galhos flexíveis ou cipós. Prometheus e Orpheus – que fogem ao tema da floresta, mas não à forma ali ensaiada – se confundem com o entorno emaranhado do qual fazem parte. Na passagem, Hasard hagard e Sûr doute apontam para o estranhamento das formas do núcleo seguinte.

Deusas e Monstros
“Sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros / sempre te parecerão sensuais e bárbaros”, escreve Maria Martins no poema Explication, que integra a tiragem especial do catálogo da mostra de 1946, aqui exibido. Ao longo de sua carreira, Maria produziu uma série de deusas e monstros, nos quais a figura humana aparece transformada. Em Impossible, a escultura mais célebre deste núcleo, o caráter erótico da metamorfose se explicita: dois corpos, um feminino e um masculino, são impedidos de se aproximar totalmente em função das estranhas formas pontiagudas de suas cabeças, ao mesmo tempo em que parecem magneticamente – amorosamente – ligados para sempre. Na passagem, as bocas abertas de A tue-tête, O galo e Chanson en suspens antecipam os cantos mudos do próximo núcleo.

Cantos
Em seu livro sobre Nietzsche, Maria Martins demonstra especial admiração pelos cantos de Zaratustra. Em O canto da noite (título que ela toma emprestado para uma de suas esculturas), Nietzsche escreve: “Uma sede está em mim, insaciada e insaciável, que busca erguer a voz”. Em O canto do mar e na escultura sem título, as formas se tornam mais arredondadas, mais indefinidas, mais abstratas, numa possível tentativa de dar forma ao que não é palpável, como a voz. Calendário da eternidade e Très avide, por sua vez, sugerem as aberturas do corpo, pontos de dissolução da forma nos mistérios da profundeza informe: talvez bocas, talvez vulvas.

Esqueletos
De uma maneira geral, a obra de Maria Martins se voltou sobretudo para as formas orgânicas. No entanto, há um conjunto de trabalhos que tendem à forma do esqueleto, ou seja, que se concentram naquilo que, no organismo, bordeja o inorgânico. Brouillard noir e Tamba-tajá perdem corporalidade, se comparadas com outras esculturas suas, e se reduzem a ossaturas. Pourquoi toujours, que pode lembrar a forma de uma planta, é toda pontuada por pequenas caveiras. É como se Maria, barrocamente (e ironicamente), nos recordasse que o que resta do humano, ao fim das metamorfoses, são os ossos. Somente a eles corresponde talvez a utopia de uma forma final.

Veronica Stigger
Curadora