Conversa de Cauê Alves com Santídio Pereira
14 de dezembro de 2023, ateliê do artista, São Paulo, SP
Cauê Alves: Vamos começar a falar de suas memórias. Como você começou a se interessar por arte? Conte um pouco da sua trajetória, da sua formação e estudos.
Santídio Pereira: Os fazeres artísticos aparecem na minha vida sobretudo a partir do momento em que cheguei em São Paulo. Antes disso, eu tinha uma relação com algo que poderia ser entendido como arte. Mas eu não tinha consciência de que isso poderia ser entendido como arte. Era uma coisa bonita, lá na Caatinga, onde eu nasci. Quando estava chovendo muito, muito, na Caatinga, no inverno, quando a enchente alagava o baixão, e a água quase encostava nas casas. Quando chovia muito, eu tinha um costume para parar de chover: pegava um graveto, desenhava um círculo na terra vermelha, no barro vermelho, puxava algumas linhas e fazia um olho de sol; fazia um sol para parar de chover e fazer sol. Isso, assim, é o primeiro desenho que fiz na minha vida, se eu for pensar. É minha primeira relação com desenho mesmo.
C.A.: Então você começou desenhando na terra, antes de ser no papel?
S.P.: Um desenho na vida. Fiz um desenho porque as pessoas falavam: “Faça um olho de sol, que o sol vem. E aí vai parar de chover”.
C.A.: E adiantou?
S.P.: Parou de chover; já tinha chovido muito, de qualquer modo, ia parar de chover, mas eu era criança, então acreditei muito que foi o meu olho de sol. Deve ter história sobre isso, é um costume lá no Nordeste.
C.A.: Quando você chegou em São Paulo, foi fácil a adaptação? Onde você iniciou seus estudos?
S.P.: Assim que cheguei do Piauí, minha mãe me colocou num lugar chamado Instituto Acaia, que é a ONG da Elisa Bracher aqui em São Paulo. E foi no Acaia que eu tive o primeiro contato com o que entendo como procedimentos artísticos. Por exemplo, com oito anos, comecei a fazer marcenaria. E, nas aulas de marcenaria, como eu tinha saudade do Piauí, saudade das memórias da infância, as aulas de marcenaria com o professor [Ênio] Alex me ajudaram a ter o Piauí perto de mim, novamente.
Eu queria ter um cavalinho perto de mim, que estava no Piauí. E o Alex me ensinava a materializar esse cavalo na madeira. Então, eu fazia o desenho de um cavalo junto com o Alex, recortávamos e tínhamos um cavalo. Para mim, o cavalo que eu fazia com sete, oito anos de idade no Acaia era tão verdadeiro quanto o cavalo que eu tinha deixado no Piauí, de tal forma que supria a saudade que eu tinha daquilo que eu havia deixado no Piauí. A marcenaria começou assim, para suprir a saudade, para colocar no mundo o que eu tinha ausência. Então eu, com oito anos, eu acho, consegui materializar muitas memórias.
Depois fiz aulas de desenho com a Andressa. Foi de tal forma que eu olhava uma garrafa, uma planta, qualquer coisa que estivesse na minha frente, exceto o ser humano, porque não sou bom de retrato, nem era. E me senti muito feliz. Parei de fazer marcenaria, parei de fazer tudo e fiquei louco por desenho. Foi muito satisfatório mesmo, eu era uma criança ainda.
Aí chegou um tempo em que percebi que o desenho não me satisfazia tanto quanto as oficinas de marcenaria. Eu não queria desenhar o que estava na minha frente; eu não queria desenhar aquilo com que tinha contato. Eu queria desenhar o que eu não tinha, o que eu tinha ausência. Eu queria colocar no mundo o que eu tinha ausência, não o que estava perto de mim. O desenho de observação não dava conta dessa parte simbólica do desenho. Chegou um tempo em que começou a não fazer sentido para mim. Um dia, o Alex me falou: “Santídio, que tal você conhecer uma outra oficina? Vamos, tem um professor chamado Fabrício Lopez, tem o grupo Xiloceasa, vamos lá, vou apresentar você”.
Comecei a fazer as aulas de gravura. Comecei só fazendo xilo. Aí, sim, lá eu desenhava, tentava desenhar a partir da memória. Fazia um desenho, gravava esse desenho. Quando imprimia, era uma outra coisa, mas era uma coisa satisfatória. Uma coisa pesada, que tinha gravidade para mim. Primeiro você faz um desenho, você grava, depois você imprime. Tem uma mudança muito grande do início até o momento da impressão. O seu desenho muda, tudo fica invertido, entram as massas, os brancos, os pretos, o resultado é muito bom. Eu gostei de fazer gravura, então, eu falei: “Quero entrar no grupo Xiloceasa”, um grupo montado pelo Fabrício que tinha um certo prestígio na instituição, eles iam para feiras, vendiam as gravuras deles.
C.A.: Como é o seu processo de pesquisa? Você desenha, fotografa o que vai estudar?
S.P.: Eu tiro foto, desenho, tenho ideias. Eu vou para a natureza, é lá que nasce a ideia. Eu penso: “Isto aqui é azul; isto aqui é verde; esta forma é assim”. Lá nascem as ideias. Mas eu tiro foto, desenho, faço rascunho e tal. Comecei a andar muito atrás de plantas. Eu fui para o Pantanal. Naquela época do Panorama do MAM, eu saí do Panorama e, no mesmo dia, fui para ali perto de Minas, atrás de plantas. Era uma imersão artística com vários artistas maravilhosos. Fui lá desenhar plantas, desenhar bromélias, fiquei lá duas semanas desenhando plantas, olhando. Ah, o sapinho dentro da planta, a bromélia de sol, bromélia de sombra, bromélia de meia-sombra, bromélia com inflorescência, bromélia de chão, bromélia epífita, pesquisando e tendo ideias. Quando cheguei aqui, eu tinha vários desenhos. Eu peguei o caderno, tinha várias bromélias, vários morros, muitas paisagens, acho que é a Bocaina, a Serra da Bocaina. Estava lá, fiquei desenhando e vi que tinha muitos morros. Pensei: “Acho que estou querendo fazer morros além de plantas”. Comecei a desenhar os morros, fazer os morros, pesquisar morros. Fui algumas vezes para Minas, atrás de morros. Os morros nascem a partir das plantas, porque eu fui atrás de plantas, e o morro se mostrou para mim. O morro me escolheu, eu escolhi o morro.
C.A.: Em seguida, você mudou o modo como trabalha com xilogravura.
S.P.: É um outro jeito de fazer xilogravura, muito mais fácil. Com esse jeito, eu pensei: “Vou fazer os morros só no recorte”. Eu nem gravo esses morros; eu desenho um morro na madeira, pego a serra tico-tico, depois passo tinta nesse pedaço, passo tinta no outro pedaço, passo tinta em todos os pedaços, junto-os e imprimo. Então, não é mais uma gravura.
C.A.: Em seguida, você começou a expor as madeiras, as matrizes viraram objetos.
S.P.: Quando comecei a fazer o recorte, a incisão e o encaixe, vi que a madeira não era mais uma matriz. Quando comecei a recortar, vi que tinha uma qualidade de objeto e, consciente disso, pensei: “Vou fazer um objeto, então, não vai ser mais uma matriz, vai ser um objeto que vai ser impresso”. Aí nasce uma consciência de objeto que pode ser impresso, o que muda tudo. Até a própria impressão muda, a partir da consciência de objeto. O resultado impresso muda. Aí, eu pensei: “Vou recortar”. Criando esses objetos, eu fui entendendo como eu poderia instalá-los na parede, e isso vai se desdobrando… E eu venho fazendo isso faz uns três ou quatro anos.