A trajetória de Claudia Andujar (Suíça, 1931), que fugiu da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial, revela o modo como conflitos políticos interferem na vida de diversos povos. A artista chegou ao Brasil em 1955, país em que vive até hoje e onde se naturalizou em 1976. Sua vida é marcada pela luta por demarcação de terras Yanomami e por uma série de ensaios fotográficos dedicados aos povos indígenas no Brasil. Claudia Andujar se identifica com a vulnerabilidade do povo Yanomami e nos ensina que o outro é aquele que nos ajuda a entender quem somos.
A série Sonhos Yanomami, de 2002, foi elaborada a partir de seu acervo de imagens, da sobreposição de cromos e negativos realizados desde 1971, ocasião de sua primeira viagem para a bacia do rio Catrimani, em Roraima, território Yanomami homologado pelo governo brasileiro apenas em 1992. Trata-se de uma obra do período maduro da artista, que já possuía grande intimidade com a cultura do povo que a acolheu.
As imagens revelam algo dos rituais dos líderes espirituais Yanomami e a importância do sonho em sua cosmologia. Os xamãs, diferente dos demais, se deslocam durante o sonho na companhia dos espíritos, dos xapiri, que podem trazer conhecimento, cura e proteção para a comunidade. O sonho, longe de ser um fato banal que é esquecido depois de despertarem, é uma conexão profunda com os espíritos, que viajam para além do céu, da terra e do mundo subterrâneo, e voltam com ensinamentos sobre o que viram.
O trabalho de Claudia Andujar se comunica com a cosmologia Yanomami e sua sabedoria ancestral por meio de imagens. Corujas, garças, macacos e retratos de indígenas se mesclam com luzes, texturas de pedras e árvores, resultando em fotografias fantasmagóricas dos sonhos de um povo com uma cultura sofisticada.
No período em que foi revelado ao mundo mais um genocídio contra os Yanomami, cometido entre 2019 e 2022, devido ao incentivo ao garimpo ilegal e ao uso de armas, a mostra adquire um caráter simbólico para dar visibilidade aos valores indígenas. Essa também é uma história de aproximadamente 50 anos: os Yanomami vêm sendo dizimados ao menos desde 1973 com a construção da Rodovia Perimetral Norte (BR-210) e da abertura de dezenas de pistas de pouso de aeronaves.
A sobrevivência dos Yanomami, além de uma questão humanitária, assegura a proteção da floresta, a sustentabilidade ambiental e a vida no planeta. Os xamãs, os únicos que conseguem sonhar mais longe e ouvir as vozes dos espíritos da floresta, impedem a queda do céu, sustentado pelos xapiri, que mantêm o equilíbrio e a ordem do universo. O fim do mundo, o desabamento do céu, ocorrerá quando a floresta for exterminada e o último xamã morrer. O tempo para reverter a grande catástrofe está se esgotando.
Cauê Alves (curador-chefe do MAM São Paulo)
O Clube de Colecionadores do Museu de Arte Moderna de São Paulo foi fundado em 1986 com o objetivo de estimular a produção artística contemporânea, além de incentivar e democratizar o colecionismo de arte. Desde então, os formatos e as proposições das obras comissionadas para o Clube buscam dialogar com as mudanças próprias da arte e da modernidade, assim como incorporar reflexões sobre a reprodução técnica de imagens e a sua influência no olhar e na experiência do espectador.
Inicialmente dedicado apenas à gravura, o Clube de Colecionadores do MAM sempre teve como premissa incentivar os artistas convidados a ultrapassarem os limites tradicionais dessa linguagem e de suas diferentes técnicas de reprodução, contribuindo, assim, para discussões ainda atuais que questionam os estatutos definitivos da arte. Foi com esse mesmo espírito experimental que o MAM criou no ano 2000 um segundo Clube, focado somente em fotografia. O surgimento e a disseminação das técnicas fotográficas transformaram radicalmente as possibilidades de produção e reprodução de imagens. Para além dos fatores técnicos, a fotografia oferece novas formas de agência ao espectador, já que no processo de interpretação de uma imagem fotográfica coloca-se em jogo referências pessoais e associações coletivas que derivam das mais diversas realidades.
Com a crescente interdisciplinaridade da produção artística e a superação efetiva das fronteiras entre diferentes linguagens, esvaziou-se o sentido de existirem dois Clubes separados. Em 2022, portanto, o MAM São Paulo aliou essas iniciativas num único Clube de Colecionadores.
O conjunto de trabalhos apresentado aqui é composto majoritariamente por obras comissionadas para o Clube na última década. Sejam elas definidas como gravuras, fotografias, ou qualquer outra descrição técnica, essas obras se relacionam pelas maneiras através das quais buscam desviar, defletir, ou divergir das expectativas tradicionais sobre a arte e, em especial, a arte reprodutível.
Lançando mão de conceitos que colocam as linguagens artísticas num diálogo tenso, mas direto — como a reprodução e a repetição, o espelhamento e o corte, a matriz e o negativo, a impressão e a positivação, a pré-edição e a pós-edição, a superfície e o volume, o plano e o fundo, a luz e a sombra — essas obras sugerem que a diversão é uma característica própria da arte contemporânea. Seja no sentido de divertir-se diante de uma provocação criativa, de surpreender-se com as viradas de direção no interior de uma composição visual estática, ou de distrair-se com formas e cores que despertam diferentes sensações, as técnicas de diversão empregadas pela arte podem oferecer ao público certo alívio da responsabilidade de demarcar sentidos decisivos. Sobretudo num mundo onde as definições são cada vez mais imprecisas e dispensáveis.
Gabriela Gotoda
Curadoria MAM São Paulo