O MAM inaugurou o Jardim de Esculturas em 1993 com um projeto de paisagismo assinado por Roberto Burle Marx e Haruyoshi Ono. As obras expostas pertenciam ao museu, mas também ao acervo da prefeitura de São Paulo e outras que já estavam ali por causa da Bienal de São Paulo. Aos poucos, algumas obras foram incorporadas na coleção do MAM.
Desde sua inauguração, o Jardim continua sendo o único espaço para a exposição de longa duração de obras do acervo do MAM. Porém, mais que um espaço privilegiado para exibição de trabalhos de arte, trata-se de um espaço público, gratuito e de enorme circulação. Essas características apresentam uma série de desafios, especialmente com relação à preservação e conservação das obras em exposição. O modo espontâneo dos visitantes se relacionarem com o Jardim e com o espaço público, embora tenha um caráter lúdico, pode danificar obras e impedir que as próximas gerações as conheçam.
Antes da celebração dos 30 anos do Jardim em 2023, como preparação para a reformulação do local, foi feita uma edição do MAM Debate. Nela, refletimos sobre as condições museológicas do Jardim, a sua situação arquitetônica, sua história, e também sobre como se dá a fruição artística para fora das paredes do museu. A singularidade do conjunto arquitetônico de Oscar Niemeyer, que desenhou a marquise como um espaço de encontro e do imprevisto, faz com que a dimensão urbana desse espaço, com toda sua ordem e caos, conviva com a paisagem ajardinada de Burle Marx e Haruyoshi Ono. Nessa paisagem, há uma situação de abertura radical para a experimentação, a convivência com o outro e as fricções que esse convívio traz.
O museu busca continuamente se relacionar com seu entorno e, por isso, realiza diferentes ativações no Jardim de Esculturas, no Parque Ibirapuera e instituições parceiras. Certamente, a noção de escultura já não abarca a multiplicidade de linguagens presentes no local. Além da incorporação de novas doações, atualização da sinalização e uma reconfiguração das obras no Jardim, as ativações propostas pelo MAM trazem intervenções temporárias e diversas ações propostas pela equipe do Educativo que contribuem para qualificar a fruição desse espaço tão especial. Boa visita!
Cauê Alves
Curador-chefe do MAM São Paulo
A obra Penca de Alexandre Brandão reproduz um cacho de palmeira, açaizeiro, jussara, as referências. Essa mimese cuidadosa de um produto vegetal reflete uma situação inusitada ao despercebido caminhante do Jardim de Esculturas. O visitante não se confundirá: é uma obra de arte escultórica que se espalha no chão. Uma confusão se origina na fração de tempo do olhar atento à composição e à dúvida sobre a planta que versa o artista. Olhando ao redor, diversas palmeiras de diferentes características intrigam, sugerindo uma ou outra origem, da qual não se identifica, e logo essa situação estranha se aprofunda.
A reprodução leva à ideia de que há uma perseguição de um modelo e que a partir dele constrói-se um símile ideal. Alexandre Brandão nutre uma expectativa que é desfeita pelos elementos que compõem a peça, carregada de ambiguidades. Com isso, o artista propõe pensarmos sobre como operamos e ingerimos discursos, seja na arte ou fora dela. As peças da obra são feitas com apenas dois elementos, argila expandida – facilmente encontrada em jardins e vasos, e também utilizado na concepção desse espaço por Burle Marx – e um arame maleável que permite unir manualmente, como um colar, as irregulares pelotas de argila formando a penca.
Esses elementos mínimos, em especial a argila expandida, geram uma inquietude dessa obra. As argilas são produtos industriais, no entanto, elaboradas com terra queimada em altas temperaturas, se expandem, e sua forma final é orgânica, já que dificilmente vemos dois iguais. Em oposição, a peça é feita de maneira artesanal, num contra-senso ela adquire uma forma que se nutre das referências numa espécie de desenho, que, visto de longe, é mesmo um grande cacho de uma palmeira idealizada, inexistente.
Essa desconexão entre realidade e reprodução nos coloca diante de uma incerteza, já que estamos cerceados por imagens e discursos que embaralham nossa memória, criando uma constante dificuldade de separar o imaginado daquilo que está diante de nós. Jorge Luis Borges, escritor argentino, mostra no conto Funes o memorioso, um sujeito que se lembrava de absolutamente tudo e, portanto, tinha dificuldade de compreender generalizações – se um vento batia sobre uma árvore, sua imagem mudava, então para o memorioso, era difícil entender que aquela era a mesma árvore de instantes atrás.
Segundo o autor, “Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso”. Os cachos de Brandão fazem com que essa dualidade venha à tona: o abstrato e ideal é também singular e orgânico, e expressa a relação que temos com o mundo natural. Ao nos aproximarmos da obra, nos deparamos com sua origem dúbia, orgânica e manual, selvagem e cultural. Seus limites são aqueles que enfrentamos diariamente diante da reprodução atordoante de discursos e imagens que circulam ininterruptamente diante dos olhos e ouvidos pouco atentos.
Pedro Nery
O MAM e o Parque Ibirapuera
O trabalho de Angela Detanico e Rafael Lain se aproxima de uma reinvenção da escrita. É recorrente na obra deles a problematização de representações de alfabetos, apontando para o que há de aleatório tanto nos sistemas de notação como nas escolhas dos símbolos. O trabalho da dupla trata das relações entre a linguagem visual, as ideias e conceitos correspondentes, embaralhando elementos do design gráfico e da arte contemporânea. A tipografia e sua relação com o espaço, com a cartografia, com a cidade ou mesmo com elementos da arquitetura são abordadas em diversos de seus trabalhos. A construção de vínculos entre objetos, materiais e desenhos com letras é um procedimento comum ao longo da trajetória da dupla.
Detanico e Lain realizaram um trabalho comissionado para o MAM, uma nova identidade visual que parte de uma planta simplificada da marquise do Ibirapuera, projetada por Oscar Niemeyer, e dos prédios ao redor. O resultado foi um mapa tipográfico dividido em 26 partes, associado às 26 letras do nosso alfabeto. Trata-se de uma caligrafia reformulada, mas também velada, já que não é evidente a correspondência entre cada parte e os sinais gráficos. Cada fragmento do conjunto arquitetônico em que o MAM está situado representa uma letra.
Apesar de se tratar de um alfabeto, de haver uma espécie de componente conceitual no trabalho, a obra final é composta por duas imagens com aparente força visual em que estão misturadas as partes do mapa. O resultado é uma nova configuração da planta da marquise e dos prédios que a rodeiam. A composição de um dos painéis é em preto e branco, já o outro parte da paleta dos projetos de Burle Marx, autor do paisagismo do Jardim de Esculturas do MAM. Em vez de o painel permitir que o visitante identifique plenamente o museu e seu Jardim de Esculturas no Parque Ibirapuera, outras arquiteturas e estruturas se formam a partir da desconstrução do conjunto.
A impressão em vinil perfurado, que poderia ser comparado ao pixel da imagem digital, permite a passagem da luz e do ar, formando uma atmosfera etérea. A obra instalada entre a fachada e o Jardim ocupa esse lugar intermediário entre o dentro e o fora, o coberto e o descoberto. Como o museu possui uma ligação histórica com essa paisagem e arquitetura, mesmo que o mapa tenha sido embaralhado, o jogo de formas, símbolos e cores reforça o vínculo do MAM com o Parque Ibirapuera.
Cauê Alves
Reunir no Parque Ibirapuera plantas usadas pela humanidade há séculos para produzir substâncias que alteram a consciência revela a condição original natural e sua associação com a cultura e o consumo de drogas. Vegetais que foram domesticados centenas de anos atrás, selecionados e trabalhados – entre plantar, colher e extrair, há outras etapas, como fermentar, secar, refinar – para transformar em substâncias viciantes entre as mais comuns, e que hoje são processadas pela indústria alimentícia para o consumo na maior parte do planeta. A obra de Raphael Escobar é composta por quatro dessas plantas: café, cana-de-açúcar, cevada e tabaco. São insumos legalizados para produção e consumo em nosso país, que nos colocaram entre os líderes mundiais de colheita, e cuja história sócio-econômica está atrelada ao passado de colonização que tinha na plantation escravista sua principal receita.
Os bodes adoram brincar retoma parte importante da pesquisa de Escobar a respeito das regras morais e legais vigentes na sociedade brasileira, que exploram o embuste da riqueza de uma indústria agrícola baseada nesses produtos altamente viciantes e potencialmente alteradores de consciência, em contraposição ao tratamento desumano legado aos indivíduos que consomem outras drogas. Escobar é também fundador de diversos coletivos e movimentos sociais na região da Cracolândia como o Pagode na Lata, atuando no centro de São Paulo, responsável por usar o samba como meio de criar uma economia solidária. É a partir dessas atuações como artista e ativista que se mesclam no trabalho para reorientar a dimensão crônica dessa situação.
Ao caminhar por entre as plantas da obra, encontra-se um banco redondo que sugere um ponto de encontro em roda, oferecendo um espaço de ativação coletiva, no qual refere-se ao ato de compartilhamento social e cultural em um espaço público. Assim, desdobra-se, para além da representação das plantas que circundam o banco: cria-se um espaço intimista e avesso a ordem lógica do Jardim de Esculturas, se opondo aos largos vazios com obras que sobressaem no espaço a partir de um ponto fixo como elemento da paisagem.
É possível compreender Bodes adoram brincar como uma ocupação no Jardim de Esculturas. Nela, há uma remissão à lógica de trabalhos e pesquisas da geração tropicalista, expressos, por exemplo, nos parangolés de Oiticica ou Os Espaços Imantados de Lygia Pape, nos quais a obra ocorre mediante um corpo coletivo marginalizado do museu, que é presentificado. Na obra de Raphael Escobar, mais do que representar uma cultura coletiva, há uma revogação do espaço moderno do museu, colocando todo o conjunto museu-jardim-parque em suspensão. Isso decorre da ética vigente de exclusão social por meio do ato do consumo de drogas evocado pelo conjunto da obra, marcando como fundamento de uma sociedade opressiva no presente e no passado.
A circunstância social que as plantas revelam está na anedota do título, aludindo aos bodes que comiam grãos de café e ficavam agitados pulando, e foi a partir daí que se resolveu extrair a cafeína. O consumo de café, açúcar, cerveja e cigarro já foram proibidos e aceitos em momentos diferentes. O que se mantém perene, segundo Escobar, é o seu consumo. A obra vale-se, assim, das plantas como conceito histórico e representação atual, enquanto o seu centro é emulador do convívio numa comunidade cercada. De fora vemos as plantas, mas seu simulacro é onde a brincadeira se torna viva.
Pedro Nery
O leve e o pesado
É recorrente na escultura de Frida Baranek o acúmulo de aço em conjunto com outros materiais. Em alguns casos ela recorre à pedra, mas o metal é a matéria mais constante, seja em arames e vergalhões, que são apreendidos como linhas, seja em chapas, visualizados como planos. A artista se apropria de materiais diretamente ligados à indústria, mas também usa a madeira, o vidro, o couro ou tecidos.
Mesmo que os elementos que ela explora em seus trabalhos sejam pesados, a obra final tende a ser percebida como leve, já que é como se os objetos colocados em meio aos arames flutuassem. O ar e o vazio são tão importantes quanto a solidez do aço. A escultura chamada BBB, de 1993, embora apoiada sobre o chão, pode ser comparada com uma nuvem carregada, daquelas cinzas, prestes a se transformar em uma tempestade. A leveza e o peso da matéria convivem harmoniosamente, como se suas esculturas desafiassem a lei da gravidade.
Ora o trabalho lembra um ninho bagunçado, novelos caóticos, com linhas sinuosas que paradoxalmente apresentam certo equilíbrio, ora uma organização sutil se constrói. No meio dos ferros retorcidos, carcaças de um avião militar podem ser vistas. Elas se escondem e se mostram aos poucos, flutuando em seu interior. O que se passa dentro da escultura pode ser visto por fora, pelos vãos, graças à certa característica aerada da obra.
Assim como ocorre com o avião, artefato altamente industrial e mais pesado do que o ar, em sua escultura, os restos e os escombros de uma aeronave se sustentam flutuando ao vento. As sucatas do avião são vestígios de algo que já passou. A oxidação do metal pode ser um sinal da passagem do tempo, mas o fluxo do tempo também se mostra na imagem da decantação que a escultura parece remeter, o que faz com que os volumes se acomodem.
Não se trata de um elogio da cultura industrial, mas talvez da constatação de sua falência, daí a presença de refugos, destroços, ruínas do passado. A escultura de Frida Baranek trata do tempo, do espaço e nos revela o mistério da flutuação, da resistência e do comportamento dos materiais.
Cauê Alves
Você tem fome do que?
A alimentação é um problema mundial que afeta particularmente o Brasil. Por outro lado, o mercado de biocombustíveis compete por espaços com as plantações de comida. Como Brasil é uma potência agrícola, a disputa torna-se acirrada: nossa prioridade é alimentar o planeta ou substituir o petróleo por álcool e biodiesel?
Para refletir sobre o desafio agrícola contemporâneo, foram reunidos no parque do Ibirapuera nove criadores de jardins em torno ao tema da alimentação. Criaram-se espontaneamente duas interpretações sobre o assunto entre os participantes: alimentação do corpo ou do espírito. A questão foi enfrentada poeticamente, ampliando as possibilidades de reflexão sobre os desafios da alimentação mundial.
A parceria com o Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire possibilitou um intercâmbio com a França, país de longa experiência em jardinismo. Paisagistas europeus foram convidados para criar seis jardins, juntamente com três artistas brasileiros que executam suas primeiras obras de jardinagem.
Ao passear pelo festival, o público irá deparar-se com os diversos jardins que interromperam a paisagem horizontal do Ibirapuera. Assim, o visitante identifica a artificialidade do cultivo agrícola, pois cada jardim cria um mundo particular em meio ao amplo parque.
A alimentação depende do domínio da tecnologia e de seu uso transformador da natureza em artifício. Somos responsáveis pelo uso contemporâneo da Terra para alimentar a humanidade. Perceber responsabilidade exige a distinção entre cultivo e natureza.
Felipe Chaimovich
Curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo
O Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire
Criado em 1922, o festival é instalado à sombra do castelo de Chaumont-sur-Loire com o objetivo de evidenciar a riqueza e a diversidade da arte dos jardins de hoje e demonstrar a abundância de tendências nesse campo.
Nossos jardins efêmeros são renovados anualmente a partir de um tema, ensejando a realização de um concurso internacional. A escolha dos paisagistas, a criatividade e a diversidade das técnicas e das propostas apresentadas, assim como o entusiasmo exponencial do público pela natureza e pelos jardins, fazem de Chaumont um lugar de encontros especiais, um canteiro de talentos e de ideias novas.
Juntamente com o festival, o parque de paisagens, o vale de brumas, a senda dos ferros selvagens, a horta biológica e o jardim infantil propõem ao público jardins permantentes que, evoluindo ao longo das estações, valeram a Chaumont o título de “jardim notável”.
Desde 2008, o festival está inscrito em um Centro de Artes e Natureza que desenvolve um projeto de arte contemporânea que permite acolher anualmente no Domaine, desde então propriedade da Région Centre, vinte exposições e instalações de artistas vindos do mundo inteiro.
É uma grande honra para o Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire ser convidado do Museu de Arte Moderna de São Paulo. A melhor resposta a esse convite é levar ao Brasil grandes paisagistas franceses da atualidade. Luis Benech, Michel Racine & Béatrice Saurel, Christine & Michel Péna, Dimitri Kenakis & Maro Avraboum Erik Borja e Florence Mercier conceberam para o parque Ibirapuera, com muito entusiasmo e imaginação, jardins sobre o tema da alimentação, essencial para o mundo de hoje e de amanha.
Chantal Colleu-Dumond
Diretora do Domaine e do Festival Internacional de Jardins de Chaumont-sur-Loire