“Que que é arte brasileira?” Esse foi o questionamento que o curador Felipe Chaimovich propôs para o 29º Panorama. A amplitude internacional da produção contemporânea foi colocada em diálogo com preceitos de nacionalidade fundados pela arte acadêmica, à medida que a curadoria organizou as 50 obras dos 50 artistas participantes em oito núcleos: paisagem, costume, natureza-morta, retrato, alegoria, emblema, religiosidade e história.
O MAM, com patrocínio da Energias do Brasil, adquiriu para o seu acervo algumas das obras expostas no 29º Panorama, dos artistas Caetano de Almeida, Rodrigo Andrade, Roberto Bethônico, Paulo Bruscky, Marcelo do Campo, Franklin Cassaro, João Loureiro, Pazé, Pitágoras Lopes Gonçalves, Yiftah Peled e Mauro Restiffe.
Artistas: assume vivid astro focus, Caetano de Almeida, Caetano Dias, Carlos Pasquetti, Chiara Banfi, Cristiano Rennó, Daniel Senise, Diego Belda, Elder Santos, Fabiano Gonper, Fernando Lindote, Francisco de Almeida, Franklin Cassaro, Gilvan Samico, Grupo EmpreZa, João Loureiro, José Bechara, José Bento, José Patrício, Julia Amaral, Julio Ghorzi, Kocubeo e Herbert Baglione, Luciano Mariussi, Luiz Sôlha, Mabe Bethônico, Marcelo do Campo, Marco Paulo Rolla, Marila Dardot, Mario Simões, Mauro Restiffe, Mestre Didi, Miguel Chikaoka, Nuno Ramos, Paula Meira, PaulaGabriela, Paulo Bruscky, Paze, Pitágoras, Raquel Stolf, Roberto Bethônico, Rodrigo Andrade, Rosângela Rennó, Tony Camargo, Torero, Valdieri Dias Nunes, Valdo Marques, Waldir Gomes, Walmer Correa, Yiftah Peled, Zé Antonio Lacerda.
A trajetória de Claudia Andujar (Suíça, 1931), que fugiu da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial, revela o modo como conflitos políticos interferem na vida de diversos povos. A artista chegou ao Brasil em 1955, país em que vive até hoje e onde se naturalizou em 1976. Sua vida é marcada pela luta por demarcação de terras Yanomami e por uma série de ensaios fotográficos dedicados aos povos indígenas no Brasil. Claudia Andujar se identifica com a vulnerabilidade do povo Yanomami e nos ensina que o outro é aquele que nos ajuda a entender quem somos.
A série Sonhos Yanomami, de 2002, foi elaborada a partir de seu acervo de imagens, da sobreposição de cromos e negativos realizados desde 1971, ocasião de sua primeira viagem para a bacia do rio Catrimani, em Roraima, território Yanomami homologado pelo governo brasileiro apenas em 1992. Trata-se de uma obra do período maduro da artista, que já possuía grande intimidade com a cultura do povo que a acolheu.
As imagens revelam algo dos rituais dos líderes espirituais Yanomami e a importância do sonho em sua cosmologia. Os xamãs, diferente dos demais, se deslocam durante o sonho na companhia dos espíritos, dos xapiri, que podem trazer conhecimento, cura e proteção para a comunidade. O sonho, longe de ser um fato banal que é esquecido depois de despertarem, é uma conexão profunda com os espíritos, que viajam para além do céu, da terra e do mundo subterrâneo, e voltam com ensinamentos sobre o que viram.
O trabalho de Claudia Andujar se comunica com a cosmologia Yanomami e sua sabedoria ancestral por meio de imagens. Corujas, garças, macacos e retratos de indígenas se mesclam com luzes, texturas de pedras e árvores, resultando em fotografias fantasmagóricas dos sonhos de um povo com uma cultura sofisticada.
No período em que foi revelado ao mundo mais um genocídio contra os Yanomami, cometido entre 2019 e 2022, devido ao incentivo ao garimpo ilegal e ao uso de armas, a mostra adquire um caráter simbólico para dar visibilidade aos valores indígenas. Essa também é uma história de aproximadamente 50 anos: os Yanomami vêm sendo dizimados ao menos desde 1973 com a construção da Rodovia Perimetral Norte (BR-210) e da abertura de dezenas de pistas de pouso de aeronaves.
A sobrevivência dos Yanomami, além de uma questão humanitária, assegura a proteção da floresta, a sustentabilidade ambiental e a vida no planeta. Os xamãs, os únicos que conseguem sonhar mais longe e ouvir as vozes dos espíritos da floresta, impedem a queda do céu, sustentado pelos xapiri, que mantêm o equilíbrio e a ordem do universo. O fim do mundo, o desabamento do céu, ocorrerá quando a floresta for exterminada e o último xamã morrer. O tempo para reverter a grande catástrofe está se esgotando.
Cauê Alves (curador-chefe do MAM São Paulo)
Intitulado Mil graus, o 38º Panorama da Arte Brasileira elabora criticamente a realidade atual do país sob a noção de calor-limite — uma temperatura em que tudo derrete, desmancha e se transforma. O projeto busca traçar um horizonte multidimensional da produção artística contemporânea brasileira, estabelecendo pontos de contato e contraste entre diversas pesquisas e práticas que, em comum, compartilham uma alta intensidade energética. Ao reunir artistas e outros agentes que abordam questões ecológicas, históricas, sociopolíticas, tecnológicas e espirituais, a exposição serve também como um ativador da memória e do debate público. Como conjunto, as obras driblam os limites da linguagem e seus sentidos preestabelecidos, revelando signos universais por meio de gestos e sotaques regionais. A ideia de uma temperatura oposta ao zero absoluto — ou seja, um quente absoluto — aponta os interesses deste Panorama por experiências radicais, condições extremas — climáticas ou metafísicas —, e estados transitórios — da matéria e da alma — que nos põem diante da transmutação como destino inevitável.
A série Panorama da Arte Brasileira, iniciada em 1969, é um marco na história das exposições. O primeiro Panorama da Arte Brasileira coincide com a instalação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) em sua sede, na marquise do Parque Ibirapuera. Com o começo da reforma da marquise, em 2024, o MAM saiu temporariamente de sua sede e deve retornar no início de 2025. O calendário e todas as atividades do MAM foram mantidos graças ao apoio e acolhimento de instituições parceiras que possuem laços históricos com o museu, como a Fundação Bienal de São Paulo, que recebeu parte de sua equipe, e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) que, além de ceder espaço para os colaboradores, abriga o 38º Panorama da Arte Brasileira.
Desenvolvido pelos curadores Germano Dushá, Thiago de Paula Souza e Ariana Nuala, o projeto do 38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus parte de uma expressão coloquial que possui múltiplos significados, mas sempre com o sentido de elevada intensidade. A mostra aponta para condições marcadas pelo calor, pelo derretimento e por mudanças drásticas em qualquer matéria existente. Na presente edição, o mundo contemporâneo é observado a partir de condições extremas, tanto no sentido de questões históricas e sociopolíticas, como em relação a discussões ecológicas e tecnológicas.
O MAM tem estabelecido parcerias com as instituições do eixo cultural do Parque Ibirapuera. Realizar o 38º Panorama da Arte Brasileira no MAC USP, além de uma aproximação histórica entre as duas instituições, é um momento de integração e soma de esforços em benefício da arte e seus públicos. O MAM agradece a receptividade do MAC USP.
Elizabeth Machado
Presidente da Diretoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo
Cauê Alves
Curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo
É com grande satisfação que o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) abre suas portas ao 38º Panorama da Arte Brasileira, realizado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
O MAC USP é um museu público criado em 1963 e, desde então, vem se dedicando à preservação, extroversão e atualização de um riquíssimo acervo de obras de arte do Brasil e do exterior. Como museu universitário, as atividades de ensino, pesquisa e extensão ancoram uma intervenção crítica e formativa atenta aos debates da arte moderna e contemporânea. Como tal, não poderíamos nos furtar a acolher em nossa sede essa instituição parceira em tantas iniciativas museológicas e curatoriais. Nas últimas décadas, o Panorama tornou-se um espaço fundamental de reconhecimento e problematização das tendências atuais da arte no Brasil. Contribuir para a manutenção de sua periodicidade, neste momento de reformas na sede do MAM, na marquise do Ibirapuera, é para nós, também, uma oportunidade de diálogo com as propostas e produções reunidas nesta edição da mostra, no 3º andar do prédio, além de algumas obras e intervenções no térreo.
Aproveitamos para convidar o público a visitar, também, as exposições do MAC USP atualmente em cartaz: Tempos Fraturados (6º e 7º andares); Circumambulatio: Anna Bella Geiger e Sacilotto Contemporâneo: cor, movimento, partilha (5º andar); Experimentações Gráficas: Doação Coleção Ivani e Jorge Yunes e Galeria de pesquisa: aspectos da coleção da Terra Foundation for American Art (4º andar) e Acervo Aberto (no anexo).
Boa visita!
José Tavares Correia de Lira
Diretor do MAC USP
Esther Império Hamburger
Vice-Diretora do MAC USP
Os avanços tecnológicos da corrida espacial entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, que culminou com a chegada do homem à Lua em 1969, estão no imaginário de Emmanuel Nassar. Mas o título de sua instalação Lataria Espacial, além dos aspectos científico e político, traz também um termo informal, que se refere a estruturas metálicas de veículos motorizados. Para o artista, lataria está associada ao termo “lata velha”, geralmente usado para designar o estado precário de grandes máquinas deterioradas.
O trabalho aproxima opostos: a lataria envelhecida e com sinais de desgaste, o que há de primitivo e popular nas funilarias do subúrbio às missões espaciais e altamente tecnológicas que colaboraram para o desenvolvimento das comunicações via satélite. Há, nessa justaposição, algo do sonho e da fantasia de voar. Mas se o voo está ligado à imagem da liberdade que tanto aviões quanto pássaros evocam, uma das asas de Lataria Espacial está decepada, como se estivesse incrustada na parede. Dentro da Sala de Vidro do MAM São Paulo, a obra parece tratar mais da impossibilidade de levantar voos do que da completa realização do desejo de liberdade.
O artista projetou e construiu seu próprio jato particular, que se assemelha aos aviões de brinquedo, mas é inspirado no modelo Phenom 300, da Embraer, que está entre os jatos executivos mais vendidos no mundo. Mas, em vez de fazer um elogio à alta performance e ao poder que uma aeronave de pequeno porte carrega, o artista aponta de modo irônico para as contradições sociais do país e para o contraste entre o imaginário da elite e do povo, justamente mostrando que essa separação já não é tão clara.
Emmanuel Nassar valoriza as cores das chapas metálicas publicitárias e o que há de popular na periferia de centros urbanos, em especial de Belém do Pará. Embora, no presente trabalho, ele não se aproprie das placas descartadas, recorrendo ao zinco galvanizado, o conjunto de pinturas que formam o avião ecoa o improviso das soluções inventivas. Entre as marcas da poética de Emmanuel Nassar está o reconhecimento das gambiarras, as engenhocas provisórias, realizadas com poucos recursos, que resolvem problemas práticos do cotidiano.
Lataria Espacial permite que os diversos públicos do MAM se divirtam ao serem recebidos com o prestígio e status de um tapete vermelho, brinquem, tirem selfies com a bagagem, como se estivessem prestes a embarcar num sonho que, embora não decole de modo literal, realiza-se na experiência única e generosa que a obra proporciona.
Cauê Alves (Curador-chefe do MAM São Paulo)
Sérgio Milliet (São Paulo, SP, 1898 – São Paulo, SP, 1966) ocupa um lugar particular na história da arte brasileira. Além de ser um dos protagonistas do modernismo brasileiro, produzindo literatura, poesia, crítica e pintura, Milliet também foi um dos agentes decisivos na primeira fase da história do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Em 2024, um autorretrato feito por ele foi doado por Maria Lúcia de Araújo Cintra ao acervo do museu.
A pintura a óleo sobre madeira de Sérgio Milliet está em exposição na Biblioteca Paulo Mendes de Almeida do MAM e apresenta autorretratos com diferentes acabamentos nas duas superfícies do suporte. Em ambos os lados, os elementos faciais do autor são formados ou atravessados por linhas curvas e diagonais, que também estruturam o espaço circundante. Na face mais acabada da obra, todos os planos fragmentados são preenchidos por cores, mas em um dos planos centrais, que corresponde a um lado do rosto, falta um olho e a pouca coloração indica que essa também não seria a versão final da pintura. O autorretrato na outra face do suporte é colorido apenas parcialmente nos planos superiores, mas também contém os traços do rosto que reaparecem no lado oposto.
A formação na Suíça e em Paris no início do século 20 ofereceram a Milliet contato com transformações artísticas e científicas que foram determinantes ao ocidente. Nesse período, ele adquiriu uma familiaridade com o modernismo que contribuiu para a difusão da arte das vanguardas europeias no Brasil entre as décadas de 1920 e 1960. Com a sua poesia, ele participou da Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo. Além disso, foi relevante a contribuição de Milliet para o processo de institucionalização da arte moderna no Brasil. Realizações como a Seção de Arte da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, inaugurada em 1945; a ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte), criada em 1949; o Museu de Arte Moderna de São Paulo, fundado em 1948, e a Bienal de São Paulo devem à presença e participação ativa de Sérgio Milliet em suas trajetórias. Nas duas últimas, ele desempenhou o papel de diretor artístico respectivamente em 1952–57 e 1953–58.
Em 1969, o MAM São Paulo apresentou a exposição Homenagem a Sérgio Milliet, onde reuniu pinturas que estavam espalhadas em coleções de amigos do artista. Por ocasião do encerramento, o crítico Geraldo Ferraz publicou um artigo no Estado de S. Paulo sugerindo que Milliet “não foi um simples pintor de domingo”, mas as suas diversas ocupações teriam sido a causa da ausência de um feito criativo de maior relevância. No artigo, que está disponível para consulta na Biblioteca do MAM, Ferraz também sumariza os principais conjuntos da obra, destacando os retratos e as paisagens.
De modo geral, a pintura de Milliet apresenta traços simples e claros que, em muitos casos, circunscrevem seu esforço por um uso mais formal da cor. São comuns os planos fracionados com diferentes cores e luminosidades, remetendo aos ideais estéticos do cubismo e ao exercício cromático do expressionismo francês. Isso é notável nas seis pinturas de Sérgio Milliet que o MAM já possui no seu acervo e também nesse autorretrato frente-e-verso recém adquirido.
Gabriela Gotoda
Curadoria MAM São Paulo
Santídio Pereira nasceu no interior do Piauí, no nordeste do Brasil, em 1996, numa área caracterizada pelo ecossistema semiárido. Nesse período, tal como em décadas anteriores, houve fluxos migratórios para o sudeste do país. Embora a região seja comumente descrita por suas condições climáticas com temperaturas elevadas e chuvas escassas, o povoado em que o artista nasceu, Curral Comprido, no município de Isaías Coelho, está em suas lembranças como um lugar de chuvas fortes, especialmente no inverno. Nessa época, a paisagem é tomada pelo capim-do-pendão-rosa, como é conhecida, na região, a espécie de origem do sul da África, com nome científico Melinis repens.
As lembranças do artista, além de se manifestarem em seus desenhos, se materializam no canteiro de capim construído pelo artista no espaço expositivo. Trata-se de um índice da vida, uma espécie de origem do mundo. Sua forma circular, como se fosse um umbigo gigante, aponta para a natureza cíclica da vida. O capim é o início do processo de nascimento, crescimento e renovação. É o começo de uma cadeia alimentar em que ocorre a transferência de energia por diferentes espécies. Os herbívoros alimentam-se do capim e são consumidos por carnívoros. Além de estar na origem da carne, do leite, do couro e do sebo, o capim é o responsável por alimentar os cavalos, um meio de transporte importante, ainda hoje, na região.
A experiência de Santídio Pereira, como ele mesmo observa, é diferente daquela do retirante apresentado na obra literária de Graciliano Ramos, em Vidas secas, da década de 1930, marcada pelas lutas e falta de perspectiva diante da escassez de chuva e da pobreza. Santídio, ao contrário, aponta para a multiplicidade de caatingas (baixões, chapadas, malhadas, passagem molhada), para a riqueza da região, em vez de enfatizar o solo como infértil. Seu trabalho também não se aproxima das pinturas de Candido Portinari, em que migrantes nordestinos, fugindo da seca rumo aos centros urbanos, são representados de modo edificante, como exemplos que podem nos instruir sobre as questões sociais e humanas enfrentadas pela população durante a estiagem. Santídio Pereira se recorda dos diferentes tipos de chuva e das transformações da flora, conforme as estações do ano. As folhas e flores, em períodos mais úmidos, são abundantes, e os verdes, intensos. Sua obra é de uma vitalidade extraordinária; ela enfrenta o lugar-comum do Piauí como árido e inóspito, ao apresentar uma atmosfera alegre, prazerosa e com cores vibrantes.
Em vez de retratar um ambiente árido, desolado, com a terra seca, rachada e com animais mortos, a gravura e pintura recentes de Santídio elegem a vegetação como motivo central. As plantas, em geral, surgem isoladas de seu bioma de origem. Elas flutuam, não como ideias, mas como se estivessem acima das circunstâncias geográficas e meteorológicas. Construídas a partir da memória, suas imagens possuem aspectos exuberantes, estão plenas, muitas vezes em época de floração. Mas se afastam do gênero da natureza-morta. Elas não são lembranças sobre a efemeridade da vida, mas elogios à força vital das plantas. A linguagem gráfica de Santídio é direta, sem excessos ou dramas, mas recusa a objetividade cientificista. Aos poucos, o artista foi simplificando seu vocabulário, recorrendo a poucos recursos, mas para chegar ao elementar, usou diversas nuances de luzes e sutilezas cromáticas.
Na sua série de pássaros de 2017 e 2018, eram frequentes as sobreposições de cores. O artista recorreu a várias camadas quase transparentes, uma por cima da outra, em que plantas se somavam a pássaros. Aos poucos, principalmente desde 2022, ele foi reduzindo as sobreposições, e o que era fundo se tornou figura. Folhas azuis, amarelas, vermelhas ou rosa vieram para o primeiro plano e tornaram-se protagonistas da gravura. O que antes era apenas parte da composição, preparação para uma imagem que seria aplicada por cima, se tornou tema central e, aos poucos, ganhou uma série de variações. Conforme o estudo que o artista fez de variadas espécies da caatinga (mandacaru, xique-xique) ou da mata atlântica (em especial, das bromélias), seus desenhos foram se tornando massas de cor. Uma mesma matriz pode gerar impressões de diferentes tons, mas Santídio faz com que cada impressão e cada gravura seja diferente da outra, com tiragem única.
Muitas de suas primeiras gravuras traziam o preto. Algumas tinham cores sobrepostas, mas, nos trabalhos recentes, o preto é raro. As cores na obra de Santídio, em geral, são solares; elas emanam uma luz intensa e forte. Suas cores, misturadas a partir das tintas de offset usadas em grandes gráficas, não se restringem à representação do mundo, ou seja, não apontam para uma correspondência direta com o percebido. Uma flor pode ser azul ou verde, já que seu compromisso é a correspondência entre suas lembranças e sensações que quer imprimir. O artista se aproxima do decorativo, mas sem buscar regras universais ou o lugar-comum; ao contrário, ele se baseia em suas experiências subjetivas e não habituais. Quanto mais íntimas e singulares são suas intenções, mais elas reverberam nos outros.
Em seu fazer, a referência a uma espécie de planta específica, que está disponível aos seus olhos, não se opõe à imaginação, ou seja, à mentalização de algo que não está presente. É como se ele interpretasse o que viu e o que lembra do que viu, mas de modo diferente, novo, já que vai além do que se passou e do que se recorda.
Em suas gravuras de paisagens, mais que usar as ferramentas tradicionais da gravura, como a goiva para as incisões sobre a madeira ou compensado, Santídio usa recursos da marcenaria, em especial o recorte da madeira e o posterior encaixe dela na hora da impressão. O que possibilita uma série enorme de variações e combinações.
Em suas paisagens, a linha é suave e fluida. Santídio aproxima as montanhas do horizonte e umas das outras, sem recorrer ao desenho tradicional. As linhas que surgem entre duas placas são linhas que marcam o encontro, e não exatamente a incisão na madeira. O contorno branco surge do encaixe, local em que a tinta não chega. Em vez de um desenho feito com o gesto e o movimento da mão, a linha indica uma aproximação, um encaixe e um diálogo com o que está próximo. A linha marca uma distância e, ao mesmo tempo, une diferentes tons. É como se cada montanha respondesse ao sol com seu próprio timbre, e o branco ao redor fosse uma espécie de brilho, uma qualidade intangível da atmosfera.
A amplidão é também um elogio à natureza e ao mundo gigante para se conhecer. Se as paisagens de Alberto da Veiga Guignard, nos anos 1950 e início dos 1960, costumam trazer névoas e mistérios, como se tudo estivesse suspenso ou em transformação, as vistas de Santídio são precisas e cristalinas, mas não deixam de apresentar algo fantasioso. Sejam as paisagens com tons quentes ou mais frios, elas são nítidas, como se nossos olhos pudessem vê-las completamente, sem ilusionismos. Mas, sob essa clareza, há algo de incerto, já que a luz unifica as montanhas e o horizonte. Não se trata de uma luz impressionista que reflete ou atravessa os objetos, mas de uma luz que emana das próprias montanhas. É como se a claridade viesse do interior delas, mas sem qualquer conotação espiritual. As paisagens são planas, e a ambiguidade surge quando o céu pouco contrasta com a cordilheira; ele aparece como continuidade tranquila, com nuances coerentes, com praticamente a mesma cor das montanhas, em vez de se comportar como um pano de fundo.
A paisagem brasileira foi elemento central nas investigações de vários artistas, desde os viajantes e colonizadores dos séculos 17, 18 e 19 até pintores modernos. O artista, paisagista e cientista amador Roberto Burle Marx está entre os grandes investigadores da paisagem. Ao longo de sua trajetória, trabalhou com plantas do cerrado, amazônicas e do sertão nordestino, valorizando espécies nativas pouco trabalhadas até então. Assim como para Burle Marx, Santídio não aborda a paisagem e as espécies brasileiras como exóticas. Ao se afastar do olhar estereotipado sobre o Brasil e sua flora, a paisagem é vivida por ele como necessidade humana imprescindível para nossa existência.
O interesse de Santídio pela botânica é evidente, assim como pela sua terra natal. Além de organizar uma residência artística e oficinas que visam colaborar com a formação dos habitantes do povoado em que nasceu, ele faz viagens, espécies de expedições. Nelas, ele busca a aproximação com a paisagem natural e visões para a prática do desenho. Sua postura diante da natureza não é a de um predador ou daquele que apenas retira a imagem que interessa. Tampouco se comporta como o turista que faz uma fotografia e parte para o próximo destino, como um explorador descompromissado. Em vez de apenas sugar a informação relevante, o modo como o artista se coloca diante do mundo se dá a partir de trocas, de afetos e de experiências significativas.
Se alguns esboços, anotações gráficas, são feitos em seus pequenos cadernos, os trabalhos finais são bem maiores. A escala dos trabalhos de Santídio Pereira é a do corpo humano. Impressas sem o uso de prensa, o artista se debruça sobre cada gravura usando ferramentas, como colheres, para que a tinta se fixe no papel. Muitas de suas obras são gigantes, e isso faz com que nosso contato com elas não seja apenas com os olhos, mas com o corpo todo. Os grandes formatos, além de indicar essa vontade de superar o desafio físico e manual, apontam para uma ambição de figurar o mundo numa escala mais próxima possível do 1 x 1, sem reduzir as imagens a miniaturas.
De um tempo para cá, Santídio vem mostrando também trabalhos em madeira. Em vez de trabalhos impressos ou pintados em papel, a própria matriz é tratada como um objeto. As madeiras possuem uma presença física e um peso maior que os papéis. Diferentes espécies de plantas são cortadas em seus formatos orgânicos, sem um anteparo ou fundo, pintadas e fixadas direto na parede. As peças são bem-acabadas e ficam entre a escultura e a matriz da xilogravura, por isso o artista prefere o termo objeto, que é amplo o suficiente para abarcar a pintura, o desenho e até aspectos da instalação. Esses objetos são também carregados de memória, tanto no sentido de tornar presente aquilo que não está próximo, como por possivelmente ter dado origem a xilogravuras.
Santídio Pereira é um artista jovem, com um olhar atento e sensibilidade rara. A qualidade de sua obra também está ligada ao modo espontâneo e verdadeiro de ele se relacionar com o mundo. Sua história de vida é uma exceção, e a visibilidade que seu trabalho alcançou é atípica no meio da arte. Ele soube relacionar sua liberdade com aquilo que era, de fato, necessário para ele, apostando na invenção, mas sem renunciar ao trabalho ou abandonar suas origens. Nesse sentido, sua obra é também originária, ela recorre a referências do Piauí, assim como à tradição da gravura e pintura modernas, para projetar horizontes fecundos e paisagens férteis.
Cauê Alves (curador-chefe do MAM São Paulo)
O Clube de Colecionadores do Museu de Arte Moderna de São Paulo foi fundado em 1986 com o objetivo de estimular a produção artística contemporânea, além de incentivar e democratizar o colecionismo de arte. Desde então, os formatos e as proposições das obras comissionadas para o Clube buscam dialogar com as mudanças próprias da arte e da modernidade, assim como incorporar reflexões sobre a reprodução técnica de imagens e a sua influência no olhar e na experiência do espectador.
Inicialmente dedicado apenas à gravura, o Clube de Colecionadores do MAM sempre teve como premissa incentivar os artistas convidados a ultrapassarem os limites tradicionais dessa linguagem e de suas diferentes técnicas de reprodução, contribuindo, assim, para discussões ainda atuais que questionam os estatutos definitivos da arte. Foi com esse mesmo espírito experimental que o MAM criou no ano 2000 um segundo Clube, focado somente em fotografia. O surgimento e a disseminação das técnicas fotográficas transformaram radicalmente as possibilidades de produção e reprodução de imagens. Para além dos fatores técnicos, a fotografia oferece novas formas de agência ao espectador, já que no processo de interpretação de uma imagem fotográfica coloca-se em jogo referências pessoais e associações coletivas que derivam das mais diversas realidades.
Com a crescente interdisciplinaridade da produção artística e a superação efetiva das fronteiras entre diferentes linguagens, esvaziou-se o sentido de existirem dois Clubes separados. Em 2022, portanto, o MAM São Paulo aliou essas iniciativas num único Clube de Colecionadores.
O conjunto de trabalhos apresentado aqui é composto majoritariamente por obras comissionadas para o Clube na última década. Sejam elas definidas como gravuras, fotografias, ou qualquer outra descrição técnica, essas obras se relacionam pelas maneiras através das quais buscam desviar, defletir, ou divergir das expectativas tradicionais sobre a arte e, em especial, a arte reprodutível.
Lançando mão de conceitos que colocam as linguagens artísticas num diálogo tenso, mas direto — como a reprodução e a repetição, o espelhamento e o corte, a matriz e o negativo, a impressão e a positivação, a pré-edição e a pós-edição, a superfície e o volume, o plano e o fundo, a luz e a sombra — essas obras sugerem que a diversão é uma característica própria da arte contemporânea. Seja no sentido de divertir-se diante de uma provocação criativa, de surpreender-se com as viradas de direção no interior de uma composição visual estática, ou de distrair-se com formas e cores que despertam diferentes sensações, as técnicas de diversão empregadas pela arte podem oferecer ao público certo alívio da responsabilidade de demarcar sentidos decisivos. Sobretudo num mundo onde as definições são cada vez mais imprecisas e dispensáveis.
Gabriela Gotoda
Curadoria MAM São Paulo
O modernismo, especialmente no campo da arquitetura, seguiu princípios funcionais com ênfase na racionalidade e no uso de formas geométricas simples. Além disso, incorporou materiais como o concreto, o que permitiu novas perspectivas construtivas. Rodrigo Sassi dialoga com ideias modernistas, mas em vez de recusar o decorativo em busca de uma aparência mais limpa, explora outras possibilidades do ornamento.
Em obra recente realizada no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, MG, instituição parceira do MAM São Paulo neste projeto, o artista atualizou noções sobre o barroco a partir da perspectiva da arte contemporânea. É justamente do cruzamento entre arte moderna e arte colonial que seu trabalho se desenvolveu. Com referências aos painéis de Burle Marx e de Athos Bulcão, típicos da arquitetura moderna de Rino Levi e Oscar Niemeyer, o artista também explora contradições do projeto moderno. Entre elas está a ênfase no trabalho operário, sempre pouco valorizado, mas fundamental para qualquer construção. Por isso, o artista produz artesanalmente módulos de concreto usando técnicas tradicionais.
A obra se apresenta como um grande relevo construído com fôrmas de madeira que servem de molde temporário para cada um dos módulos. Com elas, é possível modelar o concreto, material característico da construção civil e que suporta altas cargas. A partir de uma linha horizontal central, formas sinuosas, cinzas como o cimento, serpenteiam a parede em configurações de diferentes tamanhos. Dez peças distintas podem se encaixar umas nas outras, criando padrões variados.
Em vez de se mesclar com a parede ao fundo, o concreto preso por parafusos se sobressai e se destaca. Conforme o visitante caminha, as peças se revelam e, aos poucos, intervalos e respiros ficam evidentes. O contraste entre o plano e o espaço tridimensional se acentua e as formas orgânicas, caracterizadas pelas linhas curvas encontradas na natureza, se fundem com os volumes da geometria regular, comum na arquitetura de concreto.
Cauê Alves (curador-chefe do MAM São Paulo)
No despertar da cultura fotográfica brasileira na segunda metade do século XX, um nome figura entre as maiores referências: George Love. Artista carismático, ele sempre foi cercado por uma aura de mistério, que beirava a lenda, de tão conhecido quanto enigmático que era, pelo tanto que ele foi exposto e como ficou escondido.
Atuando em uma era de efervescência intelectual, de questionamento comportamental e de transição de costumes, George exibia um intenso brilho em suas realizações, na interação profissional e no convívio particular. A luz que trazia ao ambiente extravasava paredes e repercutia na atmosfera e nas pessoas, que vislumbravam as infinitas possibilidades de um marcante meio de expressão. Suas ações no meio cultural, editorial e corporativo expandiam os horizontes da fotografia, abrindo caminhos adiante do seu tempo. Conscientemente ou não, gerações de fotógrafos brasileiros seguem sua inspiração e seu modelo, que se realça entre as raízes de nossa contemporaneidade.
Chamá-lo de gênio também não é hipérbole. George Leary Love nasceu em 24 de maio de 1937, em Charlotte, Carolina do Norte, Estados Unidos. Negro, filho único em uma família simples e culta, concluiu seus primeiros estudos superiores antes dos 20 anos. Adotou a câmera fotográfica também cedo, vislumbrando a possibilidade profissional no segmento de fotografia de viagem, representado por arquivos de imagens, um mercado importante na época, com o qual se manteria ligado por toda sua vida profissional. Fixando-se em Nova York para mais estudos, logo passou a se dedicar à fotografia como criação autoral, tendo suas primeiras mostras em galerias de Manhattan, dando cursos e palestras. Assim, foi aceito como um dos mais jovens participantes da Association of Heliographers, um grupo restrito de expoentes da fotografia americana que promovia a arte, propunha sua expansão e inovava no uso de impressões coloridas no meio expositivo. George Love se identificava com a proposta, de forma que o ideário dessa associação é chave importante para compreender a obra que desenvolveu por toda a sua vida. Em pouco tempo, o jovem fotógrafo se tornou vice-presidente e coordenador da galeria da associação. Foram dois anos intensos, entre 1963 e o fim de 1965, até o encerramento da entidade, por carência de recursos.
A perspectiva de um novo rumo lhe foi oferecida por uma rara heliógrafa estrangeira, que o estimulou a se aventurar pelo continente sul-americano. Em janeiro de 1966, George juntava-se a Claudia Andujar em Belém para uma inusitada expedição no interior da Amazônia, verdadeira epopeia até a terra dos Xicrin. Voltaram para Belém, subiram pelo rio até Iquitos, depois Lima e Bolívia, e entraram de volta no Brasil pelo famoso “trem da morte”. Fixaram-se em São Paulo, no apartamento da Avenida Paulista, casaram-se… e, então, o resto é história.
Zé De Boni (curador)
Nota da Curadoria do MAM São Paulo:
O MAM tem conhecimento da complexidade e sensibilidade em exibir imagens de pessoas indígenas não identificadas, sobretudo quando tais registros foram realizados por pessoas não pertencentes à etnia ou cultura. O museu emprega esforços para identificar as pessoas indígenas retratadas por meio de pesquisas e o setor de Curadoria MAM São Paulo está à total disposição de quem eventualmente queira se manifestar a respeito da identificação e/ou direitos de uso de imagem dessas pessoas.
Em 1988, celebrou-se entre nós o centenário da Abolição da Escravidão, e várias iniciativas, de caráter público ou privado, foram promovidas para festejar a efeméride. O mesmo ano via surgir a nova carta magna da República, a Constituição que ampliava ou instituía direitos até então recusados a mulheres, negros, negras e originários. A celebração também deu ensejo a protestos daqueles que, justamente, entendiam ser pífios os avanços do combate às desigualdades de raça, gênero e classe, profunda e historicamente arraigadas na sociedade brasileira.
Nessa ocasião, tanto a exposição A Mão Afro-Brasileira – Significado da contribuição artística e histórica, organizada por Emanoel Araujo e realizada no MAM, quanto a nova Constituição foram resultados da luta obstinada daqueles que entendiam a necessidade de construir uma sociedade que, por ser justa e igualitária, seria também mais comprometida com a democracia.
O lapso de tempo que separa a exposição de 1988 desta, Mãos: 35 anos da Mão Afro-Brasileira, foi repleto de acontecimentos historicamente significativos, que acabaram por confirmar a relevância das instituições culturais do país, pois afirmam, igualmente, a importância central que a educação (formal e não formal) ocupa no combate às mazelas que secularmente nos assombram. Entre elas, o racismo estrutural que, apesar dos avanços que paulatina e lentamente vão sendo feitos, permanece, infelizmente, como característica comum ao cotidiano de milhões de afrodescendentes que são por ele infelicitados.
Entre as importantes conquistas observadas está, justamente, o debate sobre a constituição dos acervos dos nossos museus e sobre como eles espelham, ou não, a diversidade étnica, de gênero e classe da população do país. No momento em que se estabelece o necessário e profícuo debate sobre a relevância e circulação da produção intelectual e artística de minorias secularmente excluídas, convém lembrar a importância pioneira da mostra de 1988.
A exposição Mãos acaba por celebrar a memória de Emanoel Araujo – criador do Museu Afro Brasil, que hoje recebe seu nome –, um polímata que, falecido há um ano, no dia 7 de setembro de 2022, catalisou, a partir da sua pioneira e corajosa atuação, a vontade de todos os que desejam a promoção da cultura afro-diaspórica, por entendê-la parte valiosa e inextrincável de um patrimônio que pertence a toda a humanidade.
Claudinei Roberto da Silva
curador
Artistas
MAM São Paulo (Sala Paulo Figueiredo)
Agnaldo Manuel dos Santos, Aline Bispo, Almandrade, André Ricardo, Arthur Timótheo da Costa, Betto Souza, Claudio Cupertino, Cosme Martins, Denis Moreira, Diogo Nógue, Edival Ramosa, Edu Silva, Emanoel Araujo, Emaye – Natalia Marques, Eneida Sanches, Estevão Roberto da Silva, Flávia Santos, Genilson Soares, Heitor dos Prazeres, João Timótheo da Costa, Jorge dos Anjos, José Adário dos Santos, Leandro Mendes, Luiz 83, Maria Lídia Magliani, Maurino de Araújo, May Agontinmé, Mestre Didi, Néia Martins, Nivaldo Carmo, Otávio Araújo, Paulo Nazareth, Peter de Brito, Rebeca Carapiá, Rommulo Vieira Conceição, Rosana Paulino, Rubem Valentim, Sérgio Adriano H, Sidney Amaral, Sonia Gomes, Taygoara Schiavinoto, Wilson Tibério e Yêdamaria.
MAB Emanoel Araujo (Biblioteca Carolina Maria de Jesus)
Emanoel Araujo, Denis Moreira, May Agontinmé, Juliana dos Santos, Lidia Lisbôa e Renata Felinto.
A trajetória de Claudia Andujar (Suíça, 1931), que fugiu da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial, revela o modo como conflitos políticos interferem na vida de diversos povos. A artista chegou ao Brasil em 1955, país em que vive até hoje e onde se naturalizou em 1976. Sua vida é marcada pela luta por demarcação de terras Yanomami e por uma série de ensaios fotográficos dedicados aos povos indígenas no Brasil. Claudia Andujar se identifica com a vulnerabilidade do povo Yanomami e nos ensina que o outro é aquele que nos ajuda a entender quem somos.
A série Sonhos Yanomami, de 2002, foi elaborada a partir de seu acervo de imagens, da sobreposição de cromos e negativos realizados desde 1971, ocasião de sua primeira viagem para a bacia do rio Catrimani, em Roraima, território Yanomami homologado pelo governo brasileiro apenas em 1992. Trata-se de uma obra do período maduro da artista, que já possuía grande intimidade com a cultura do povo que a acolheu.
As imagens revelam algo dos rituais dos líderes espirituais Yanomami e a importância do sonho em sua cosmologia. Os xamãs, diferente dos demais, se deslocam durante o sonho na companhia dos espíritos, dos xapiri, que podem trazer conhecimento, cura e proteção para a comunidade. O sonho, longe de ser um fato banal que é esquecido depois de despertarem, é uma conexão profunda com os espíritos, que viajam para além do céu, da terra e do mundo subterrâneo, e voltam com ensinamentos sobre o que viram.
O trabalho de Claudia Andujar se comunica com a cosmologia Yanomami e sua sabedoria ancestral por meio de imagens. Corujas, garças, macacos e retratos de indígenas se mesclam com luzes, texturas de pedras e árvores, resultando em fotografias fantasmagóricas dos sonhos de um povo com uma cultura sofisticada.
No período em que foi revelado ao mundo mais um genocídio contra os Yanomami, cometido entre 2019 e 2022, devido ao incentivo ao garimpo ilegal e ao uso de armas, a mostra adquire um caráter simbólico para dar visibilidade aos valores indígenas. Essa também é uma história de aproximadamente 50 anos: os Yanomami vêm sendo dizimados ao menos desde 1973 com a construção da Rodovia Perimetral Norte (BR-210) e da abertura de dezenas de pistas de pouso de aeronaves.
A sobrevivência dos Yanomami, além de uma questão humanitária, assegura a proteção da floresta, a sustentabilidade ambiental e a vida no planeta. Os xamãs, os únicos que conseguem sonhar mais longe e ouvir as vozes dos espíritos da floresta, impedem a queda do céu, sustentado pelos xapiri, que mantêm o equilíbrio e a ordem do universo. O fim do mundo, o desabamento do céu, ocorrerá quando a floresta for exterminada e o último xamã morrer. O tempo para reverter a grande catástrofe está se esgotando.
Cauê Alves (curador-chefe do MAM São Paulo)
O espaço ocupado por um museu de arte não é como outro qualquer. Especialmente os museus de arte moderna, já que foram em grande parte instalados em edifícios construídos especialmente para eles. Foi justamente através de projetos para esses museus que grandes nomes da arquitetura estabeleceram seus legados. Esse é o caso de Lina Bo Bardi (1914 – 1992), a arquiteta ítalo-brasileira responsável pelo projeto arquitetônico do MASP, do MAM Bahia e do atual edifício do MAM São Paulo, seu último trabalho museográfico.
Mesmo sendo um dos primeiros museus de arte moderna do mundo, o MAM São Paulo nunca teve uma sede construída especialmente para ele, ocupando ao longo de sua história uma série de espaços adaptados. Durante os primeiros anos, foi instalado no edifício dos Diários Associados na Rua Sete de Abril, num espaço projetado pelo arquiteto Vilanova Artigas. Depois, o MAM ocupou uma parte do Pavilhão Matarazzo, quando a Bienal de São Paulo ainda era um evento do museu. Após um período de reorganização devido à doação do seu acervo à USP em 1963, o MAM retomou suas atividades em 1969 numa nova sede: o edifício sob a marquise do Parque Ibirapuera.
Este espaço integra o conjunto arquitetônico do Parque desde a sua fundação em 1954. Após abrigar o Museu de Cera até, ao menos, o ano seguinte, recebeu a exposição Bahia no Ibirapuera de Lina Bo Bardi e Martim Gonçalves em 1959, e, depois, foi usado por quase uma década como depósito da Bienal. A partir da concessão para uso do edifício atribuída pela prefeitura em 1968, o MAM convidou Giancarlo Palanti para reformar o pavilhão que se tornaria a sede do museu. Mas foi apenas com a reforma projetada por Lina Bo Bardi (com colaboração de André Vainer e Marcelo Ferraz) em 1982 – entregue em 1983 – que o MAM executou a fachada de vidro que transformaria a sua relação com o Parque Ibirapuera.
Em 2023, o MAM identificou um desenho da arquiteta em meio aos documentos guardados pela biblioteca e retomou a pesquisa sobre a reforma realizada por Lina Bo Bardi há quarenta anos. Trata-se de um estudo para um dispositivo expográfico que ela propôs com o projeto da reforma em 1982. Os painéis desse dispositivo seguiriam uma espécie de linha paralela à fachada do museu, enfatizando a continuidade do espaço expositivo. Considerando as limitações que esses painéis fixos trariam para as exposições, a diretoria do museu à época optou por não realizá-los.
Dada a importância deste desenho para o legado da arquiteta e da sua relação com o edifício ocupado pelo MAM, o museu decidiu incorporá-lo ao acervo, junto às demais obras em papel da sua coleção. Na exposição, ele é apresentado com outros materiais referentes à reforma de Lina Bo Bardi no MAM, incluindo estudos em planta, fotos de maquete, e outros documentos que registram o estado anterior e posterior do edifício. Com isso, além de promover a pesquisa em torno da arquitetura de museus e, especialmente, da arte moderna, buscamos compreender melhor o trabalho e a herança deixada por Lina, que, com o êxito da sua marca museográfica, transformou o MAM num espaço contínuo com o Parque Ibirapuera.
Gabriela Gotoda
Pedro Nery
curadoria
Agradecimento especial ao Instituto Bardi / Casa de Vidro e à sua equipe.
ativações no jardim
Desde seu encontro com Ismael Nery, em 1921, até sua morte em 1975, Murilo Mendes foi uma das figuras mais influentes da vida artística brasileira. Foi crítico de arte, colecionador, organizador de exposições, além de poeta. Exerceu papel determinante na formação de toda uma geração de críticos, de Mario Pedrosa a Antônio Bento e Rubens Navarra e foi interlocutor de Mário de Andrade no que diz respeito à arte carioca. Essa importância, no entanto, raramente lhe é reconhecida.
Seu pensamento crítico encontra-se espalhado em jornais e revistas, em muitos poemas e prosas poéticas, entretanto somente no fim da vida Murilo organizou parte de seus textos críticos em um volume publicado postumamente, A invenção do finito. Em 1994, sua coleção de arte foi adquirida pela Universidade Federal de Juiz de Fora, que criou o Museu de Arte Murilo Mendes (MAMM) e desde então organiza mostras e publicações sobre o acervo. Esta exposição teria sido impossível sem o trabalho rigoroso que o MAM vem desenvolvendo há décadas.
A exposição está dividida em três blocos: o primeiro aborda o círculo de Murilo Mendes e Ismael Nery no Rio de Janeiro nas décadas de 1920 e 1930, com alguns desdobramentos na década seguinte. Nessa fase, Murilo apoia um conjunto de artistas como o próprio Nery, Cícero Dias, Alberto da Veiga Guignard e Jorge de Lima, que cultivam uma relação estreita entre artes plásticas e poesia, próximos das poéticas surrealistas e metafísicas, mas com divergências. Por outro lado, opõe-se às tendências dominantes na época, realistas e defensoras de uma volta ao métier, a serviço do nacionalismo e do engajamento social. É a fase “rebelde” de Murilo.
O segundo bloco da exposição abrange de meados da década de 1930 até sua mudança para a Itália em 1957. Mendes já é um poeta famoso e um crítico influente. Seu leque de interesses se amplia: Lasar Segall, Bruno Giorgi, Maria Martins, Alberto Magnelli. Começa a montar uma coleção de arte que reunia várias obras adquiridas em suas viagens à Europa.
De grande importância, nessa fase, é a convivência com artistas que chegaram ao Rio de Janeiro da Europa fugindo do nazismo, em particular com o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. O círculo que se forma em volta desses artistas inclui Milton Dacosta, Djanira, Ione Saldanha, Almir Mavignier, Carlos Scliar, Fayga Ostrower, entre outros. Murilo passa a se interessar por poéticas abstracionistas, mas não adere ao concretismo.
O terceiro bloco abrange o período em que Murilo viveu em Roma, a partir de 1957, onde leciona literatura brasileira na universidade. Lá aproxima-se do crítico de arte Giulio Carlo Argan, com quem compartilha o interesse por artistas italianos que praticavam um abstracionismo não geométrico, sem aderir de todo ao informalismo. Interessa-se pela arte optical e cinética e colabora com artistas como Alberto Magnelli, Lucio Fontana e Soto em mostras e publicações. Organiza exposições de artistas brasileiros contemporâneos na galeria da Embaixada do Brasil em Roma, incluindo Volpi, Goeldi, Weissmann, Mavignier entre outros. O ápice dessa última fase talvez seja a curadoria da representação brasileira na Bienal de Veneza de 1964, a primeira em que o Brasil conta com seu próprio pavilhão. Com esta exposição espera-se que o espaço reservado a Murilo Mendes crítico de arte e colecionador, tanto na sua biografia como na história da crítica brasileira, se afirme e se expanda.
Lorenzo Mammì
Maria Betânia Amoroso
Taisa Palhares
curadores
permanência a transformação
Eu, Você e a Lua é um trabalho de Tunga inédito no Brasil e está entre as últimas obras realizadas pelo artista que iniciou sua produção na segunda metade dos anos de 1960. Ao longo de sua trajetória, Tunga se interessou pela alquimia, pela psicanálise, pelas ciências e pela filosofia. Ele construiu uma mitologia singular com imagens simbólicas e materiais em que as noções de permanência e transformação são fundamentais. É recorrente em sua obra a ideia de que “o trabalho é um conjunto de trabalhos”.
Mesmo com a profusão de objetos e materiais, em Eu, Você e a Lua há uma forte coerência entre as partes. Alguns elementos são recorrentes no vocabulário poético do artista, como garrafas de cristal, de gesso ou de resina, tanto ocas como sólidas. Espelhos, cristais, pedras, pratos presos em aros e hastes, além de correntes ou alças de couro fixadas em tripés também aparecem em outras obras de Tunga. Ao lado de um tronco petrificado de milhares de anos, o uso desses materiais pode evocar o orgânico e o inorgânico ou o natural e o artificial.
O fóssil de uma árvore que se manteve intacto, como se o tempo estivesse suspenso, convive com uma essência de âmbar, uma fragrância com toques amadeirados que goteja como se uma ampulheta marcasse a passagem do tempo e a transformação da matéria. Recorrendo ao olfato e à visão, os elementos originários e pré-históricos na obra de Tunga se fundem ao contemporâneo e à presença efêmera do perfume.
Fragmentos agigantados de um corpo humano, dedos polegares de bronze patinado apontam para baixo, enquanto espelhos arredondados e prateados como a lua refletem a luz que vem de cima. Escultura de dedos, como se estivessem duplicados, apontam para lados contrários, para o céu e para o solo. Uma delas de pedra, na horizontal, alinhada ao tronco, indica sentidos opostos e apontam para o eu e para o outro. O olhar de dois sujeitos pode atravessar o fóssil e se encontrar num único. Os dois lados já não parecem se opor. Na poética de Tunga, o que está no planeta Terra ou fora dele, o interno e o externo, assim como eu, você e a lua, formam um todo indivisível.
Cauê Alves
(curador-chefe do MAM São Paulo)
O título da exposição, Realidades e Simulacros, explora a pluralidade que surge como resultado do uso do “s” ao final das palavras e a aparente oposição entre a realidade e a ficção. Durante muito tempo as pessoas acreditaram na existência de uma realidade única, objetiva. Mas o fato é que esta realidade não existe. Existem muitas realidades que se sobrepõem, se complementam, se anulam, se contradizem. Realidades e Simulacros são dimensões de uma mesma experiência.
Olhar para o mundo é como vestir uma lente de linguagem, fazendo com que as coisas apareçam conforme a visão de mundo da pessoa. Existem muitos condicionantes que regulam o alcance e o escopo dessas lentes: culturais, geográficos, políticos, biológicos, sociais, tecnológicos. Geralmente elas são invisíveis, mas a tecnologia contemporânea tem lhes emprestado concretude. Por meio de um avatar, navegando em um ambiente, sobrepondo uma existência digital ao mundo ao redor, é possível vestir as lentes de uma realidade alternativa à realidade percebida apenas por meio dos meus sentidos.
Realidades e Simulacros reúne dez artistas que criaram experiências digitais de diferentes perfis como forma de contribuir para este jogo de multiplicidades. Ver um outro mundo, uma outra cultura, uma outra geografia, uma outra política, uma outra biologia, uma outra sociedade, uma outra tecnologia. Ao explorar a realidade aumentada como uma possibilidade de interferência na paisagem do Ibirapuera, a exposição estimula essa dinâmica. O visitante é então convidado a perceber a realidade ao redor de outra maneira e sobrepor outras camadas de realidade à sua existência.
As obras criadas especialmente para a exposição permitem o contato com diferentes realidades e/ou simulacros. O simulacro também é uma realidade. Uma realidade lúdica. Uma realidade política. Uma realidade fantástica. Uma realidade contraditória. Uma realidade biológica. Uma realidade invisível. Uma realidade decolonial. Um mosaico de existências que se sobrepõe a um ambiente complexo e diverso. Uma experiência de camadas que tornam possíveis novas formas de ver e ouvir.
Cauê Alves
Marcus Bastos
curadores
Fazer junto é uma questão de escolha e princípio. Situações de fazer junto nos desafiam a vivenciar os muitos sentidos de pertencimento e participação, seja pelas noções de convívio, pela cooperação ou colaboração que o trabalho coletivo possibilita. Envolve um conjunto de estratégias, que podem se tornar métodos ou não.
As obras e experiências artísticas e educativas que integram a exposição Elementar: fazer junto fazem parte do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. A Instituição valoriza a ecologia de saberes que constitui seus acervos de obras de arte e experiências educativas ligadas a diversos repertórios e processos de criação de artistas e não artistas.
Elementar é aquilo que está na natureza das coisas, em sua essência, componente básico do mundo e suas matérias. Artistas lidam direta ou indiretamente com as terras, as águas, os ares e os fogos, elementos naturais que compõem as mais diversas materialidades, poéticas e processos na vida e nas artes.
Tal como elaborou Richard Sennett, trabalhar em cooperação pressupõe disposição e receptividade. A expografia da mostra contempla experiências poéticas e um Espaço de Fazer Junto, além de proposições realizadas com artistas e educadores.
No museu, elementar é “fazer junto”. Também é a possibilidade de instaurar situações e modos de se relacionar com os acervos e os diferentes públicos, em vivências e experiências. Envolve o artístico e os saberes que a arte movimenta, coloca em contato todos que disponibilizam sua atenção, presença e abertura à conexão geradora de sentidos.
Valquíria Prates
Mirela Estelles
Cauê Alves
curadores
Maciej Antani Babinski
Varsóvia, Polônia 1931
O MAM São Paulo apresenta a recente aquisição de mais 20 obras de Maciej Babinski. O artista está entre os grandes de sua geração e o presente conjunto enriquece nosso acervo. Como as gravuras trazem detalhes, narrativas e vários acontecimentos, os públicos que frequentam o MAM têm agora a possibilidade de investigar cada detalhe das obras com o auxílio de lupas disponibilizadas pelo museu.
Babinski nasceu em Varsóvia, Polônia, em 1931. Com a Segunda Guerra Mundial foi para a Inglaterra, depois Canadá, até se fixar no Brasil, em 1965. No Rio de Janeiro, aproximou-se de diversos artistas, entre eles Oswald Goeldi. Foi também professor na Universidade de Brasília e lecionou na Universidade Federal de Uberlândia, MG. Viveu em São Paulo por oito anos, onde frequentou a Escola Brasil. Atualmente vive em Várzea Alegre, no Ceará. Seus deslocamentos e o convívio com manifestações da vanguarda marcam a sua trajetória.
As peças que o MAM acaba de receber são de períodos diversos: há exemplares dos anos de 1950, 1960, 1970 e 1980, além de um significativo conjunto realizado nas duas primeiras décadas do século 21. A mais antiga foi realizada em 1955, momento em que o artista desenvolveu obras abstratas. Sua gravura dos anos de 1960 aborda indiretamente o ambiente de tensão presente durante a ditadura militar. Se em algumas gravuras há traços expressivos, em outras, feitas entre 2009 e 2014, afloram seu imaginário e suas fantasias. Em alguns dos trabalhos das décadas de 1970, de 1980 e de 2010 paisagens naturalistas e formas vegetais são perseguidas pelo artista com traços singulares e autorais. Ao mesmo tempo, figuras humanas, ora mais geometrizadas, ora mais oníricas, aparecem em narrativas em que o animalesco, cenários complexos e personagens inusitados se intercalam.
O conjunto representa a variedade de estilos e técnicas usadas pelo artista, passando pela xilogravura e com ênfase na gravura em metal. Trata-se de uma seleção representativa e generosa, feita pelo próprio Babinski, de sua fecunda obra.
Cauê Alves
A exposição comemorativa do centenário de nascimento de Arcangelo Ianelli reveste-se de especial emoção por se realizar no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o museu mais estimado pelo artista. Sua primeira exposição individual na instituição aconteceu pelas mãos de Mario Pedrosa, em 1961, e, a partir de 1969, ele participou de seis edições do Panorama de Pintura, sendo premiado em 1973. Em 1978, sua retrospectiva no museu recebeu o prêmio de melhor exposição do ano da ABCA – Associação Brasileira dos Críticos de Arte.
Ianelli foi um artista do fazer, obsessivamente dedicado ao métier, e intransigente quanto ao lugar da pintura. Tendo feito o percurso habitual de sua geração, realizou obras acadêmicas, seguidas por pinturas com acentos cezannianos, que foram se tornando cada vez mais sintéticas até o mergulho na abstração, que o encaminhou, sem volta, em busca da essência.
O partido curatorial adotado nesta retrospectiva foi o de privilegiar a coerência de sua obra, mostrando que, no jovem pintor de 1950, já está contido o artista de 1970; que o mural de 1975 abre caminho para a escultura dos anos 1990 e que, nesse momento, nascem também as grandes pinturas, realizadas até 2000. Para permitir ao visitante a compreensão desse processo, a mostra estabelece um percurso que se inicia com a produção dos anos 1970, retrograda até 1950 e volta traçando o percurso de 1960 a 2000. Assim é possível ver, ao mesmo tempo, todas essas vertentes nascendo umas das outras. A mostra também propõe revelar o processo de criação e execução do artista, trazendo para o público a intimidade de seu ateliê e revelando sua persistência e perfeccionismo.
Uma exposição é um trabalho que envolve muita gente. Meus agradecimentos aos filhos do artista, Katia e Rubens Ianelli; à diretoria do museu; à jovem e eficiente equipe da instituição, liderada por Cauê Alves, e a todos os demais colaboradores. Parte deles, como eu, conheceu pessoalmente o artista, mas, mesmo aqueles que não tiveram essa sorte, entregam ao público esta mostra igualmente encantados.
Salve, Ianelli!
Denise Mattar
Curadora
Diálogos com cor e luz é uma exposição voltada para a difusão da coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que apresenta exclusivamente trabalhos desse acervo. Aqui, reunimos um pequeno recorte de obras com ênfase nas relações entre a cor e a luz na arte brasileira da segunda metade do século 20. Vale destacar que, no século passado, o MAM São Paulo desempenhou um papel significativo na introdução e na propagação das tendências abstracionistas no Brasil. Dois exemplos merecem ser citados: a mostra inaugural do museu, Do Figurativismo ao Abstracionismo, realizada em março de 1949 por Léon Degand (1907-1958), e a exposição Ruptura, em dezembro de 1952, que deu início ao movimento concretista na arte brasileira, com a publicação de seu manifesto.
Agrupamos no espaço várias gerações de artistas, sem privilegiar tendências nem estabelecer uma ordem cronológica. Misturamos tempos e linguagens, para incentivar nosso olhar à percepção de semelhanças e diferenças entre as várias poéticas visuais nos diversos tratamentos da luz e da cor. A museografia distribuiu no espaço os painéis radiais, numa referência ao disco de cores – ou seja, ao experimento óptico de Isaac Newton (1643-1727), publicado em 1707 em seu livro Opticks. Nele, o físico inglês demonstra, por meio de um disco de sete cores (vermelho, violeta, azul índigo, azul ciano, verde, amarelo e laranja), sua teoria de que a luz branca do Sol é formada pelos matizes do arco-íris. Ao girarmos o disco com velocidade, as cores se sobrepõem em nossa retina e nos fazem enxergar o branco.
A seleção de obras, ao enfatizar os diálogos com a cor e a luz em diversos suportes, chama atenção para a luz como elemento fundante da percepção. Trabalhar com a luz significa que temos de lidar também com a sombra, a escuridão ou a ausência de luz. E nos interessa justamente o primeiro contato que temos com a cor, anterior às teorizações e aos sentidos que acrescentamos a ela. A cor é indissociável daquilo que ela expressa. Ela mesma já é expressão, não apenas a tradução de uma ideia ou sentido preconcebido.
Fundamental é nos livrarmos dos sentidos já instituídos e sedimentados no campo da cultura, de conceitos anteriores ao vivido, para aí podermos ter a experiência com a duração da cor. Em vez de pensarmos a cor e a luz como elementos idealizados, o contato direto com a arte nos ajuda a restituir o vínculo originário com o mundo. Os diálogos entre luz e cor na arte nos mostram que o mundo pode ser surpreendente e nossa relação com ele, inesgotável.
Fábio Magalhães
Cauê Alves
curadores
Oásis poluído
A sala de vidro onde está a instalação Nosso Mundo, de Shirley Paes Leme, estabelece uma relação direta com o entorno do Jardim de Esculturas do MAM, como se fosse um prolongamento do paisagismo de Roberto Burle Marx. De longe, o assoalho espelhado da obra da artista se assemelha a um espelho d’água, um oásis, como se nele houvesse um líquido. Mas ao caminhar sobre as placas reflexivas, o piso ganha consistência.
Os visitantes podem ver de fora ou ficar imersos no interior da instalação, como se o ritmo intenso da cidade estivesse suspenso por alguns instantes, formando um lugar de desaceleração e de contemplação. O chão espelhado em plena marquise do Parque Ibirapuera multiplica o espaço e o corpo de quem caminha sobre ele. Enquanto observamos a obra, o espelho nos reflete. Um duplo invertido do painel da grande parede ao fundo da sala aparece na superfície espelhada.
Shirley Paes Leme elaborou uma composição a partir da paisagem da cidade, com filtros de ar-condicionado de carros já utilizados e manchados pela poluição. O material utilizado nos revela a qualidade do ar que respiramos. É como se cada filtro que representa prédios ou partes do céu tornasse visível a densa atmosfera que nos circunda, tomada por fuligem e substâncias nocivas à saúde.
A artista constrói uma espécie de linha do horizonte a partir do ar denso e da fumaça fixada nos filtros. São essas partículas que encobrem a nossa visão e podem ofuscar nossos sentidos. Além de apontar para questões ambientais cada vez mais urgentes, Shirley Paes Leme reflete e dá visibilidade para a situação paradoxal de estarmos numa espécie de oásis poluído.
Cauê Alves
curador
Silêncios e direitos
A instalação de Ana Teixeira para o Projeto Parede do MAM São Paulo é fruto de uma pesquisa que a artista realiza desde 2019, a partir da escuta de mais de uma centena de mulheres. Historicamente, a fala das mulheres sempre foi reprimida. É mais comum que mulheres sejam interrompidas, seja em reuniões de trabalho ou mesmo durante o lazer, do que homens. Tudo se passa como se elas não fossem capazes de seguir com seus argumentos. Além de enfrentar a violência física, o trabalho de Ana Teixeira discute a violência verbal contra a mulher.
Depois de fotografar as mulheres entrevistadas, a artista desenhou algumas delas segurando placas com dizeres que reforçam a necessidade de romper com a dominação masculina, para que todos os gêneros sejam tratados de modo respeitoso e igualitário. Ela dá voz às mulheres cis, trans e travestis, lembrando que não é admissível que elas sejam caladas. No fone de ouvido, é possível escutar 101 frases coletadas por Ana Teixeira (clique aqui e leia as frases na íntegra), nas quais a maioria das entrevistadas reafirma a liberdade das mulheres, critica o patriarcado e manifesta seus desejos ao responder à pergunta: O que você não quer mais calar?
Em 2021, Ana Teixeira realizou uma pesquisa no acervo da Biblioteca Mário de Andrade e elaborou a publicação Cala a Boca Já Morreu! (clique aqui para ler), cujas páginas estão também expostas no Projeto Parede. Os livros usados pela artista, pertencentes à Biblioteca Mário de Andrade, estão disponíveis para consulta na biblioteca do MAM.
A obra de Ana Teixeira revela que, no lamentável silenciamento das mulheres, há uma potência de significados que não cabe em uma parede. Em vez de vazios ou ausências, os silêncios, em especial esses que estão se rompendo, são promessas de um futuro com igualdade de direitos, inclusive o direito de fala.
Cauê Alves
Uma biblioteca particular não é apenas uma coleção de livros, é parte de uma biografia, que reflete os interesses e também as passagens de uma vida, com encontros e desencontros entre autores, outros intelectuais etc. No caso de Aracy Amaral, é também o conjunto de referências que sedimentaram nas prateleiras e espelham o trabalho árduo e fundamental de erudição durante uma vida dedicada aos estudos, à escrita, à crítica e à sensibilidade artística. A doação de Aracy Amaral de uma parte de sua biblioteca pessoal para o Museu de Arte Moderna de São Paulo conduziu a Biblioteca Paulo Mendes de Almeida a orgulhar-se de ser depositária desse legado intelectual e a olhar retrospectivamente para a sua atuação nesse museu.
A presença de Amaral no decorrer da história do MAM é uma constante desde os primeiros anos da instituição, e as trajetórias são quase concomitantes. Recém formada como jornalista, Amaral trabalhou como monitora na II Bienal de São Paulo em 1954 (até 1961 a Bienal de São Paulo era uma atribuição do MAM), e atuou como repórter para jornais do Rio de Janeiro cobrindo a Bienal, bem como a cena artística paulistana. Desde então, sua contribuição somente avançou, participando de dezenas de exposições, dedicando textos e colaborando ativamente na Comissão de Arte (1996 – 2001) e no Conselho Consultivo de Arte (2014 – 2015) do MAM.
Afim de ilustrar essas inúmeras passagens de Amaral junto ao museu, reunimos aqui a sua produção autoral, referenciando exposições pelas quais foi responsável, seja pelo conteúdo crítico, ou pela curadoria – este último é um termo mais comumente utilizado a partir de meados dos anos 1990, e que não daria conta de toda a presença da crítica no MAM –, revelando a perenidade de suas ações culturais no museu.
Optamos por oferecer ao visitante justamente o material mais rico de suas passagens pelo MAM: os catálogos das mostras realizadas por Aracy Amaral que documentam suas atividades e que estão guardadas e disponíveis ao público aqui na Biblioteca. Os catálogos apresentados se subdividem por uma tipologia que serve apenas como instrumento de acesso, entre exposições individuais, exposições coletivas históricas e exposições coletivas contemporâneas. Ao mesmo tempo, é possível conhecer a coleção de livros doada pela crítica na prateleira deslizante que está indicada, onde os livros são mantidos juntos de forma a representar sua biblioteca particular.
De 20 de abril a 17 de setembro de 2023, a 37ª edição do Panorama de Arte Brasileira: Sob as cinzas, brasa será exibido no Sesc Sorocaba. Com correalização do MAM São Paulo e Sesc São Paulo, a itinerância leva ao interior do estado obras dos 26 artistas, com instalações, pinturas, esculturas e vídeos que conduzem discussões sobre o legado e os símbolos da colonização, o cenário de destruição contínua, a memória diante de efemérides de relevância nacional, e as possibilidades de se imaginar narrativas individuais e coletivas na arte contemporânea brasileira.
O 37º Panorama da Arte Brasileira do MAM São Paulo aconteceu numa data emblemática, o bicentenário do que se convencionou chamar de Independência do Brasil e o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Esses dois acontecimentos, que se entrecruzam ao longo da história do Brasil, deixaram legados e uma série de questões que reverberam até hoje na sociedade brasileira. A partir da produção artística contemporânea, seria possível decantar os vínculos do Brasil com sua herança colonial levando em conta as dimensões históricas, políticas e estéticas da Independência do Brasil e do modernismo.
Diversos artistas que produzem desde o final do século XX e início do XXI problematizam em suas obras, a partir de perspectivas contemporâneas e de suas próprias origens e referências, discussões que perpassam a história brasileira desde o período colonial até o presente. Essas obras pulsam como brasa sob as cinzas de uma terra devastada, que começou a ser destruída com a colonização portuguesa, com o extermínio e a exploração dos povos indígenas e a escravização de mulheres e homens arrancados da África.
Entre as intenções do Panorama 2022 está a de contribuir para a desconstrução de certos olhares e paradigmas naturalizados, assim como do legado colonial do Brasil. Avessa à noção moderna de progresso, a curadoria desta edição enfatiza as ruínas e as barbaridades de um país que sequer conseguiu cumprir as promessas básicas de uma sociedade economicamente moderna e integrada.
A partir de uma teia curatorial com trabalhos de artistas de diferentes gerações, regiões e identidades étnico-raciais e de gênero, o 37º Panorama valoriza a dimensão pedagógica da arte, construída em parceria com o Educativo do MAM. A forma não se opõe à vida social e política, a própria arte possui papel formador e pode prospectar rupturas e estimular debates e reflexões em diversos públicos.
A experiência com a arte pode retomar nossa capacidade de projetar o futuro, de imaginar utopias, já que estamos no meio da catástrofe tentando apagar incêndios – e incendiando símbolos coloniais. Para algumas sociedades arcaicas, o futuro está justamente no passado, na relação com os ancestrais, ou seja, distante da visão vanguardista moderna de estar à frente do próprio tempo. Enquanto as brasas queimam sob as cinzas, diversos artistas recontam histórias, propõem diálogos a partir de suas próprias vivências, de suas origens, repertórios, da terra, do barro, da borracha, do desenho, de objetos cotidianos, da tinta e da tela, do vídeo, de narrativas, de histórias, da arte, de mapas, de bandeiras, de monumentos e de corpos.
A brasa que se esconde sob as cinzas, sob a terra arrasada, sob as ruínas desse projeto de país, ainda arde. Assim como ainda persiste a lógica colonial e o pensamento retrógrado, também há resistência e ação. Isso quer dizer que se a brasa ainda está consumindo o que resta, o que não foi queimado, ela também pulsa como força transformadora. E as cinzas, como se sabe, podem ser usadas como adubo para a arte e para tudo o que ainda irá florescer nessa terra.
Cauê Alves
Claudinei Roberto da Silva
Cristiana Tejo
Vanessa Davidson
Artistas participantes:
Ana Mazzei, André Ricardo, Bel Falleiros, Camila Sposati, davi de jesus do nascimento, Celeida Tostes, Éder Oliveira, Eneida Sanches e Tracy Collins (LAZYGOATWORKS), Erica Ferrari, Giselle Beiguelman, Gustavo Torrezan, Glauco Rodrigues, Jaime Lauriano, Lais Myrrha, Laryssa Machada, Lidia Lisbôa, Luiz 83, Maria Laet, Marina Camargo, Marcelo D’Salete, No Martins, Ricardo Lucena, RodriguezRemor, Sidney Amaral, Tadáskia e Xadalu Tupã Jekupé.
Entre 14 de setembro e 10 de dezembro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo leva obras emblemáticas de seu acervo ao Instituto CPFL, em Campinas. Com curadoria de José Armando Pereira da Silva, a mostra intitulada Arte Moderna na Metrópole: 1947-1951 – Acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo convida o público a conhecer a consolidação da cultura modernista brasileira. Originalmente programada para ter início em abril de 2020, a exposição foi adiada em razão da pandemia da Covid-19.
A seleção eleita por José Armando traz 45 obras do acervo do Museu, assinadas por Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, Bruno Giorgi, Clóvis Graciano, Emiliano Di Cavalcanti, Emídio de Souza, José Antônio da Silva, Lívio Abramo, Lucia Suané, Mário Zanini, Mick Carnicelli, Oswaldo Goeldi, Paulo Rossi Osir, Raphael Galvez, Rebolo Gonsales, Roger Van Rogger, Sérgio Milliet, Tarsila do Amaral e Victor Brecheret. Trata-se de uma retrospectiva de exposições ocorridas na Galeria Domus, ponto de referência no cenário artístico paulistano da primeira metade do século XX.
O Brasil passava pelo processo de redemocratização e nova constituição depois de 15 anos de governo de Getúlio Vargas, e São Paulo se consolidava na condição de metrópole com dois milhões de habitantes – ambiente propício para o surgimento de polos culturais.
Um ano antes da inauguração do mam, em 1947, nascia a Galeria Domus, espaço fundado pelo casal de imigrantes italianos Anna Maria Fiocca (1913 – 1994) e Pasquale Fiocca (1914 – 1994) cuja atuação contribuiu para impulsionar o mercado de arte moderna da época.
“Durante os cincos anos de funcionamento da galeria, o movimento artístico ganhou novas instâncias com a instalação do Museu de Arte de São Paulo, dos Museus de Arte Moderna no Rio e em São Paulo, da Bienal e dos Salões Paulista e Nacional de Arte Moderna. O panorama se diversificou com novas tendências. Esse dinamismo, que elevava alguns artistas da Domus para um nicho histórico, conduzia outros para o foco de debates”, explica o curador.
Gerente executiva do Instituto CPFL, Daniela Pagotto explica: “A arte é uma ferramenta de transformação de realidades, pois resgata a nossa identidade cultural e a nossa história. Vamos receber uma nova exposição, em parceria com o MAM São Paulo, para celebrar o centenário do modernismo no Brasil. Essa é uma importante programação para que a população da região metropolitana de Campinas visite as obras de grandes nomes deste movimento. Também teremos uma agenda de arte e educação voltada para atender escolas e grupos de visitas guiadas”.
“O espírito moderno que predominava na década de 1940 foi decisivo para a fundação do MAM e, agora, por meio desta parceria com o Instituto CPFL, lançamos um olhar ao passado para refletir acerca da função dos museus e das instituições artísticas na atualidade. Para ampliar a experiência da exposição, o MAM Educativo realizará diversas atividades abertas ao público, iniciativa que reitera o compromisso pedagógico do Museu também em suas itinerâncias”, afirma Elizabeth Machado, presidente do MAM São Paulo.
Durante o período emblemático do bicentenário de independência do Brasil, o Museu de Arte Moderna de São Paulo recebe a partir do dia 23 de julho o 37° Panorama da Arte Brasileira – Sob as cinzas, brasa, que propõe desconstruir paradigmas naturalizados em relação ao Brasil colônia. Em contraponto, neste ano, também é celebrado o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, marco para o modernismo brasileiro que trouxe um novo e amplo cenário cultural, com artistas de distintas regiões do país.
Com grupo curatorial diverso, composto por Claudinei Roberto da Silva, Vanessa Davidson, Cristiana Tejo e Cauê Alves, o 37° Panorama enfatiza as pesquisas que resultam em questionamentos e possíveis soluções artísticas surgidas do enfrentamento de um cenário onde a barbárie está manifestada de diversas formas. Ideais de civilização se atritam na busca da dimensão plural sobre as questões trazidas à tona a partir de obras que se relacionam tanto pela condição comum deste cenário quanto por uma diversidade de perspectivas, sendo seus autores de diferentes gerações e identidades étnico raciais e de gênero.
A mostra valoriza a dimensão pedagógica da arte e prospecta rupturas estruturais. Ainda em um mundo pandêmico, o Panorama propõe investigar como os artistas enraizados no Brasil têm enfrentado os múltiplos problemas causados pelo modelo de desenvolvimento adotado nos últimos séculos.
A curadoria se baseou em signos que interligam de maneira sutil à brasa, como símbolo de resistência e também de ambiguidade, trazendo uma diversidade de pontos de vista e pesquisas.
O trabalho de Lenora de Barros para a sala de vidro do mam estabelece um diálogo com a obra Aranha, 1996, de Louise Bourgeois, que esteve em comodato no museu e foi exibida por cerca de 20 anos nesse mesmo local. A obra se relaciona diretamente com o jardim de esculturas do museu na área externa.
A artista desdobra o diálogo que tem estabelecido com artistas mulheres como Lygia Clark, Yoko Ono, Cindy Sherman e Méret Oppenheim em uma conversa retroativa com Louise Bourgeois. A partir da memória do lugar, de espelhos retrovisores, de imagens, de poemas e de sons, Lenora de Barros constrói uma grande aranha de metal que ativa o passado recente. Além de tocar na história das exposições do mam, a instalação envolve aspectos verbais (visuais e sonoros) integrando o gráfico e o fonético da palavra, o que se aproxima da dimensão verbivocovisual inventada pelo poeta irlandês James Joyce.
Retromemória, 2022, recorre à tradição concretista e revê, do ponto de vista contemporâneo, a arte construtiva. No momento em que o mam apresenta em sua programação a segunda geração da arte moderna e a abstração geométrica, Lenora de Barros nos faz pensar sobre as obras que já foram exibidas no museu, nos ajudando a superar as perdas e enfrentar os desafios do presente. As imagens refletidas pelos espelhos que formam a aranha são como duplos, representações que reproduzem o mundo visível, o movimento fragmentado da memória, projetam luzes e sílabas do poema pela sala. O título do trabalho é decomposto e ecoam pelo museu palavras como “memória”, “aranha”, “emaranha” que se entrelaçam e produzem outros sentidos.
O espelho é esse objeto enigmático, que mesmo estando fora de nós, nos ajuda a nos compreender melhor, seja para olharmos para dentro, seja para seguir em frente. Como o mundo parece cada vez mais acelerado, andar em alta velocidade exige que a gente possa enxergar os pontos cegos, o que está atrás, sem ter que virar o corpo para o que já passou. Mesmo que às vezes pareça que tudo está andando para trás, Retromemória não trata de um retorno ao passado, tampouco de uma nostalgia, mas da construção de memórias e estímulos para que a gente possa caminhar em direção ao futuro.
Cauê Alves
Curador
artistas
Anatol Wladyslaw
Geraldo de Barros
Hermelindo Fiaminghi
Judith Lauand
Kazmer Féjer
Leopold Haar
Lothar Charoux
Luiz Sacilotto
Maurício Nogueira Lima
Waldemar Cordeiro
RUPTURA E O GRUPO
abstração e arte concreta, 70 anos
Em 9 de dezembro de 1952, um grupo de sete artistas apresentou-se no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) como grupo Ruptura, lançando um manifesto que levava o mesmo nome. Embora a exposição tenha durado apenas doze dias, seus desdobramentos foram longevos. O impacto da arte abstrata naquele contexto e as palavras de ordem do manifesto provocaram debates calorosos, que ecoaram durante toda a década de 1950. Ao longo do tempo, o Ruptura tornou-se um marco na história da arte moderna na América Latina.
Três dos artistas que participaram da mostra inaugural – Leopold Haar, Kazmér Féjer e Waldemar Cordeiro – eram imigrantes que se instalaram no Brasil no imediato pós-guerra, trazendo consigo não apenas os traumas do conflito, mas a vivência junto a grupos de arte abstrata que emergiam com força na Europa. Anatol Wladyslaw e Lothar Charoux ainda crianças vieram da Polônia e da Áustria, respectivamente; Geraldo de Barros e Luiz Sacilotto nasceram no Brasil. Os membros do grupo tinham origem na classe média e trabalhadora, ou enfrentavam o desafio de reconstruir suas vidas. Mesmo assim, num país de passado escravagista, ser branco e europeu significava ter condições de ascensão social mais propícias do que a da maior parte da população brasileira.
O grupo defendia a abstração como projeto de transformação, capaz de permear o cotidiano das pessoas, influenciando a indústria e organizando a vida em suas mais diversas escalas: das artes plásticas ao design, da arquitetura à cidade. Eles entendiam que a linguagem visual construída com elementos simples – linhas, cores e planos – tinha a potência de ultrapassar fronteiras geográficas, sociais e culturais, sendo capaz de sensibilizar pessoas de diversos contextos e origens. Em defesa de um projeto de renovação da arte que tivesse um impacto social amplo, eles propunham a ruptura com a figuração e com tipos de abstração centrados na individualidade dos artistas, que julgavam como inadequadas para o tempo em que viviam.
Ruptura e o grupo: abstração e arte concreta, 70 anos caminha em duas direções. Num primeiro momento, o visitante terá contato com um conjunto de obras e registros fotográficos que remete à mostra inaugural de 1952 – duas pinturas que foram apresentadas na ocasião e outras que representam a produção dos artistas no início dos anos 1950 – pois a documentação existente não permite que a exposição histórica seja reconstruída. Num segundo momento, abordaremos a produção e constituição do grupo ao longo da década de 1950. Nesses anos, a composição original do grupo é modificada com a morte de Leopold Haar e o afastamento de Anatol Wladyslaw e Geraldo de Barros. Em contrapartida, Hermelindo Fiaminghi, Judith Lauand e Maurício Nogueira Lima unem-se àqueles que permaneciam atuando em conjunto. A rigor, o grupo Ruptura só se apresentou com esse nome em dezembro de 1952. No entanto, Charoux, Cordeiro, Sacilotto, Fiaminghi, Lauand e Nogueira Lima afirmaram, ao longo de suas vidas, que fizeram parte do grupo Ruptura, atuante em São Paulo nos anos 1950. Mesmo que não tenha havido outras apresentações públicas do grupo Ruptura exatamente com esse nome, a narrativa dos artistas e as fortes correspondências entre suas pesquisas visuais nos faz entender que eles continuaram atuando como um grupo.
Olhar para o grupo Ruptura hoje não significa aderir às propostas de seu manifesto, mas considerar as circunstâncias de seu aparecimento, bem como as várias contradições entre o o texto e aquilo que os artistas produziram na mesma época. A história aqui reunida, apesar da clareza formal das obras, não exclui imprecisões, tampouco equívocos na leitura de uma realidade desigual e desafiadora. Por outro lado, o engajamento e a persistência do grupo em explorar problemas dessa ordem demonstram sua crença nas possibilidades infinitas – e, portanto, libertárias – de imaginar novas ordenações de mundo.
Heloisa Espada e Yuri Quevedo
Curadoria
Na última década, vimos a destruição de um vasto patrimônio cultural e natural. Em 2013, o Memorial da América Latina pegou fogo. Dois anos depois, em 2015, foi a vez do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. O Museu Nacional, no Rio de janeiro, com cerca de 20 milhões de itens, em 2018 foi totalmente destruído pelo fogo. Em 2021, ocorreu o mais recente dessa série de incêndios no acervo da Cinemateca Brasileira. Isso sem contar os vários quilômetros quadrados que foram queimados como instrumento de desmatamento na Amazônia e no Pantanal.
Pintura de emergência (2021-2022), de Marcius Galan, para o Projeto Parede do MAM, pode ser compreendido tanto a partir desse panorama catastrófico como, também, a partir de um sentido mais indireto. Estamos numa época de temperaturas altas por conta do aquecimento global causado pelas mudanças climáticas, mas também num ambiente acalorado por conta do debate político.
Partindo da sinalização de emergência que serve para reduzir riscos de destruição e contribuir para localização dos equipamentos de segurança como hidrantes e extintores de incêndio, o artista realiza uma pintura que faz uso da geometria mundana, aquela encontrada no cotidiano e sem qualquer sentido transcendente. Como estratégia de composição, Marcius Galan se vale da repetição de um módulo básico de vermelho e amarelo. A justaposição na vertical e horizontal da sinalização enfatiza a ideia de urgência e cria um ritmo, uma espécie de expectativa do próximo módulo.
As formas retangulares usadas pelo artista claramente fazem referência à tradição da pintura construtiva geométrica, que teve entre os seus protagonistas os artistas concretistas e neoconcretistas dos anos de 1950 e início dos anos de 1960. Entretanto, em vez de buscar a racionalidade universal das formas geométricas ou tentar romper com a representação da natureza, o artista, não sem um tom de ironia, nos ajuda a compreender o tempo em que vivemos.
No momento em que o MAM São Paulo apresenta em sua programação a segunda geração da arte moderna que enfatizou a abstração, Marcius Galan atualiza uma reflexão sobre esse período do ponto de vista contemporâneo. Se nos anos de 1950 o Brasil viveu um surto desenvolvimentista industrial, embalado no slogan de Juscelino Kubitschek “50 anos em cinco”, que projetava um país moderno e civilizado, hoje estamos diante de uma distopia, de incêndios e emergências.
Cauê Alves
Curador
No ano do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o MAM organiza uma pequena exposição com uma seleção de cartazes de exposições de artistas modernos realizadas pelo museu nas últimas décadas. A mostra foi produzida apenas com o acervo documental da Biblioteca Paulo Mendes de Almeida, que guarda e memória institucional do MAM e é referência para a pesquisa sobre arte moderna e contemporânea. A coleção de cartazes do MAM, que conta com mais de uma centena deles, preserva o design dessas peças, o modo como foram divulgadas as mostras realizadas pelo museu, assim com as informações neles contidas. Mais do que um espaço para pesquisas, a biblioteca contribui para a visibilidade da história do museu.
Além de cartazes, o MAM realizou um documentário premiado pelo PROAC e que está disponível na plataforma #CulturaEmCasa, criada pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. O vídeo, produzido predominantemente com documentos da própria biblioteca, aborda artistas que compõem a trajetória do modernismo tal como Alfredo Volpi, Anita Malfatti, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Oswaldo Goeldi, Tarsila do Amaral, entre outros. O documentário institucional trata da Semana de Arte Moderna de 1922, percorrendo a trajetória de exibições modernistas no museu.
A presente mostra parte do legado das exposições de arte moderna que o MAM apresentou por mais de sete décadas. Trata-se de uma homenagem aos artistas protagonistas da arte moderna brasileira e uma pequena contribuição para os estudos sobre a história das exposições no Brasil.
Cauê Alves
Curador
A sede do MAM está temporariamente fechada em virtude da reforma da marquise do Parque Ibirapuera.
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